terça-feira, 5 de novembro de 2013

Crise faz do funcionalismo público em Lisboa um verdadeiro drama

Catarina Marcelino tem 42 anos, é funcionária da prefeitura de Lisboa, vive nos arredores da cidade, vai e vem de barco todos os dias, tem uma carreira universitária, um carro, um marido que esteve desempregado mas que agora dá um jeito com pequenos empregos e um filho que a avó apanha na creche todos os dias.
Recebia por mês, com seu salário antes do ciclo da crise, cerca de 1.300 euros por, mais dois salários extras. Agora ganha ao redor de 1 mil e só recebe um salário a mais no Natal (o das férias foi diluído pelo próprio governo nos 12 salários mensais, a fim de amortizar o impacto dos cortes). Ano a ano, orçamento de Estado a orçamento de Estado, ela vê seu salário minguar e sua vida empobrecer e diminuir, até quase afogá-la.
O próximo orçamento geral do governo português do conservador Pedro Passos Coelho prevê uma nova redução no salário dos funcionários públicos, que afetará todos os que ganham mais de 600 euros, mais ou menos 90% dos 700 mil funcionários públicos de Portugal. O Parlamento, entre protestos na rua, deu na sexta-feira a primeira aprovação a esse projeto, com os votos favoráveis da coalizão governamental de centro-direita e a rejeição da oposição. E o aprovará com os mesmos votos no próximo dia 26.
Isso significará que Catarina Marcelino verá seu já magro contracheque diminuir ainda mais, em quase 80 euros, segundo algumas das tabelas que a imprensa portuguesa não para de publicar, no que já constitui quase um novo gênero jornalístico lusitano surgido com a crise.
Em um país com 17% de desemprego, muitos estão passando pior, mas talvez nada descreva mais acertadamente a potência destrutiva desta recessão econômica em Portugal que o progressivo empobrecimento de sua classe média, a grande perdedora desse tempo que não acaba, transformada em classe média-baixa sem perspectivas de melhora em médio prazo, destinada a ir renunciando a uma qualidade de vida que parecia garantida.
Catarina Marcelino o exemplifica com tristeza e raiva misturadas, falando da marmita diária: "Antes eu comia em uma cantina perto do trabalho. Barata, mas era uma cantina. Agora não posso gastar esses 3 ou 4 euros diários. Agora levo comida de casa, que faço na véspera, depois de atender meu filho, no tempo que antes dedicava a minhas coisas. É simbólico. É injusto e me desespera".
Não compra mais livros ("Nós os trocamos, leio os clássicos que tinha em casa") nem jornais ("antes eu comprava sempre, hoje é um luxo e isso me deprime"), e conta que amigos universitários de sua mesma classe social decidiram que não vão mais planejar que seus filhos vão à universidade. "Argumentam que custa muito dinheiro, que não vale a pena e que não é um investimento seguro." Pertence ao Sindicato dos Trabalhadores da Função Pública e tenta arranjar tempo para reivindicar e lutar contra esse destino aparentemente imbatível de cortes sem fim: "Creio que os sindicatos têm que defender mais a classe média. Por isso me afiliei".
Também em Lisboa, Teresa Almeida, 61 anos, professora de literatura francesa e estudos feministas da Universidade Nova, faz contas com um sorriso amargo. Em 2011 ganhava 2.800 euros e tinha dois salários extras. Agora ganha 2.300 e só um extra. E no ano que vem ganhará 2.150. Com outro sorriso, à pergunta de como sua vida mudou no dia a dia, responde: "Em tudo. Uma amiga minha diz que já vamos ao Corte Inglês [grande loja no centro de Lisboa] como quem vai a um museu, para olhar tudo sem tocar em nada".
Está separada, e sua filha e seu genro, com trabalhos precários ou sem trabalho, vivem quase sob suas custas. "Com meu neto, somos quatro para comer sempre. Assim, no supermercado só compramos marcas genéricas. Não compro roupa há anos. Não compro mais os livros que antes costumava comprar para completar minha formação."
E acrescenta: "Não gosto de me queixar, porque sei que há muitos que passam pior. Eu pelo menos tenho minha filha perto. Outras amigas minhas viram seus filhos irem para o Brasil ou Angola. E conheço amigas deprimidas por essa pobreza repentina que não saem de casa. Eu me nego a isso".
Na mesma universidade, a professora de alemão Clarisse Afonso, de 67 anos, solteira, com um salário parecido (e cortes parecidos), afirma que além de ter esquecido do cartão de crédito, de viajar, de trocar o carro de dez anos e de comprar roupa, e de ter que ajudar um pouco sua mãe aposentada - de quem retiraram as subvenções no metrô e nas cantinas dos centros diurnos, as sucessivas mordidas em seu salário não revolucionaram sua vida.
Mas teme um futuro que parecia conquistado há anos: "Me aposentarei aos 70 anos. Não poderei trabalhar mais. E as aposentadorias estão sendo cortadas. Eu ainda trabalho para que minha aposentadoria fique maior, para que minha vida não sofra demais. Porque, embora não seja especialmente pessimista, sei que isto não vai mudar para melhor, sei que ficaremos assim".
Voltar aos anos 60
Teresa Almeida conta que a crise que convulsiona o país deixou seus habitantes tão atordoados que muitas vezes ela tem a sensação - não totalmente penosa - de ter voltado aos anos 1950 ou 60. "Como não temos mais dinheiro para ir ao cinema ou a restaurantes, então vamos ao parque perto de casa e vemos os vizinhos; alguns estamos conhecendo agora, e isso é bom."
Dá outro exemplo: "Agora cozinho muito mais em casa, faço compotas e tortas, o que não fazia há muito, e aprendi a tricotar". E acrescenta: "Eu venho de uma família de classe média, mas então a classe média não era tampouco como a classe média de alguns anos atrás, meu pai era engenheiro na fábrica de porcelana Vista Alegre, mas eu herdava as roupas de minhas primas mais velhas, nada se jogava fora. Agora tenho a sensação de que estamos vivendo um tempo parecido, de que regressamos àqueles anos, que contudo tinham algo de bom". E conclui: "Tínhamos pouco naquela época, mas não nos faltou o importante. Agora é igual. Tenho o importante, minha filha e minha neta, e um trabalho de que gosto, com alunos que gostam de mim."

Reportagem de Antonio Jimenez Barca, para o El País, reproduzido no UOL. Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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