Em vida, Hakimullah Mehsud, líder do Talibã paquistanês, era o inimigo público número um: uma figura cruel que dedicou sua carreira ao derramamento de sangue e ao caos, que foi acusado ocasionalmente por especialistas paquistaneses de ser títere do serviço de inteligência indiano ou, até mesmo, do serviço de inteligência norte-americano.
Mas, depois de sua morte, ao que parece, os corações paquistaneses se afeiçoaram mais a ele.
Desde que mísseis disparados por drones norte-americanos mataram Mehsud em seu veículo na última sexta-feira (1º), os líderespolíticos do Paquistão reagiram com veemência incomum.
O ministro do Interior paquistanês, Chaudhry Nisar Ali Khan, denunciou o ataque como uma sabotagem destinada a minar as incipientes negociações de paz entre o governo do Paquistão e o Talibã. Comentaristas de órgãos de comunicação esbravejaram sobre uma (suposta) traição norte-americana. E o ex-astro do críquete Imran Khan, que atualmente é político, renovou sua ameaça de bloquear as linhas de suprimentos militares da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) por meio de Khyber Pakhtunkhwa, uma província que seu partido, o Tehreek-e-Insaf, controla.
Praticamente ninguém saudou abertamente a morte de Mehsud, que foi responsável pela morte de milhares de civis paquistaneses. Para alguns analistas norte-americanos da área de segurança, a furiosa reação oficial é mais um sinal da perversidade e da ingratidão que, segundo eles, tem marcado a relação do Paquistão com os Estados Unidos.
"É mais um ataque pelas costas", disse Bill Roggio, cujo site, o Long War Journal, monitora ataques com drones. "Mesmo aqueles de nós que observam o Paquistão de perto não sabem mais qual é o posicionamento do país. Eles fazem muito jogo duplo".
Para muitos paquistaneses, no entanto, são os Estados Unidos que estão sendo agindo de maneira traiçoeira. Para eles, opiniões como a de Roggio exemplificam a típica arrogância norte-americana. Shireen Mazari, um alto funcionário do partido de Khan, pediu que os militares paquistaneses derrubassem os drones norte-americanos a tiros.
Mas, mesmo que o equívoco em relação à morte de Mehsud pareça ser apenas mais uma manifestação da corrosiva relação entre os dois países --embora seja uma manifestação especialmente preocupante--, ele está enraizado em uma complexa mistura de psicologia e política, que pode ser fundamental para a maneira como os paquistaneses veem seus arqui-aliados norte-americanos.
Em parte, esse equívoco é um produto do fracasso do Paquistão em combater a insurgência dentro de seu território. Depois de anos de humilhações e derramamento de sangue provocados pelo Talibã e da pesada pressão norte-americana para que houvesse uma intensificação das ações militares contra o grupo terrorista, os establishments político e de segurança do Paquistão ainda concordam que iniciar conversações de paz com o Talibã é o melhor caminho.
Essas conversações poderiam ter tido alguma chance de sucesso --as negociações anteriores fracassaram rapidamente--, mas a morte de Mehsud parece tê-las tirado dos trilhos totalmente, pelo menos no momento.
Além disso, segundo os analistas, os paquistaneses têm um histórico consistente, embora relativamente recente, de torcer por pessoas que o Ocidente considera vilãs e ir contra gente que o Ocidente enaltece.
Aafia Siddiqui, paquistanesa que está cumprindo uma sentença de prisão de 86 anos em Nova York por ter tentado matar norte-americanos no Afeganistão, é praticamente uma heroína nacional, conhecida popularmente como "filha da nação".
Por outro lado, Malala Yousafzai, ativista adolescente que defende a educação de meninas e foi baleada na cabeça no ano passado pelo Talibã, incidente que a transformou em um ícone em todo o mundo, tem sido demonizada no Paquistão, onde ela é regularmente chamada de agente da CIA ou títere do Ocidente.
Essas reações contraditórias decorrem, em parte, da percepção dos paquistaneses sobre a história de seu país com os Estados Unidos. Na opinião deles, essa é uma longa história de traição, abandono e enganação: muitos paquistaneses acreditam que os Estados Unidos usaram o Paquistão durante a Guerra Fria, deixaram o país de lado durante a década de 1990 e passaram a maior parte de seu tempo desde então tentando roubar o arsenal nuclear do exército paquistanês. Logo em seguida, vieram os drones da CIA.
Nos últimos anos, esse ressentimento tem sido reforçado por um crescente sentimento de impotência entre os paquistaneses: as próprias forças de segurança do país não conseguiram encontrar nem capturar Osama bin Laden, por exemplo, e também foi preciso que um drone norte-americano entrasse em ação para matar o líder anterior do Talibã, Baitullah Mehsud, em agosto de 2009.
"De certa forma, isso não tem nada a ver com Malala nem com Aafia Siddiqui nem com Hakimullah", disse Adil Najam, professor de relações internacionais na Universidade de Boston, que é paquistanês. "Essas pessoas são apenas personagens de uma relação maior, que se tornou muito tóxica."
O problema, segundo alguns analistas, é que a hostilidade em relação aos Estados Unidos pode estar prejudicando a capacidade dos paquistaneses de discernir quais são seus próprios interesses. De acordo com Najam, durante a conflagração gerada pela morte de Hakimullah Mehsud o governo paquistanês não foi capaz de diferenciar a oposição aos ataques aéreos com drones da eliminação de um inimigo militante e homicida.
"O fato de não conseguirmos distinguir essas coisas é algo muito destrutivo", disse ele. "A reação tornou-se absolutamente absurda."
Analistas dizem que essa reação também traz lições para o governo Obama, pois mostra que os ataques com drones, apesar de todo o seu apelo antisséptico, sempre enfrentarão problemas de legitimidade, pois o programa secreto opera em uma zona cinzenta da lei internacional --independentemente de quão grande seja o alvo que eles venham a destruir.
No momento, a bola está no campo de Khan. Se nesta segunda-feira o partido dele votar pelo bloqueio dos suprimentos norte-americanos destinados ao Afeganistão, isso dificultará a vida do primeiro-ministro Nawaz Sharif, que se opõe à suspensão das linhas de abastecimento, mas que, no entanto, prometeu dar andamento às negociações de paz com o Talibã.
A preocupação com o destino dessas conversações tem sido dada como justificativa para as críticas mais veementes relacionadas ao assassinato de Mehsud. Mas, em meio a todo o entusiasmo em relação às negociações, os políticos paquistaneses ainda têm que enfrentar publicamente o primeiro obstáculo: decidir o que o governo paquistanês está disposto a conceder ao Talibã, uma vez que o objetivo central do grupo terrorista é derrubar o próprio governo do Paquistão.
Texto de Declan Walsh, para o The New York Times, reproduzido no UOL. Tradutor: Cláudia Gonçalves
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