sábado, 9 de novembro de 2013

Fobia aos ciganos remonta a passado macabro da França

Montreuil-Bellay é um povoado próximo a Saumur, uma das capitais da província francesa de Maine-et-Loire. Aqui vive há séculos a velha França, a França do "terroir", a França branca da flor-de-lis, que bebe vinho engarrafado há meio século e come manteiga e cogumelos. É a França que vota em Marine Le Pen, a França avara de "Eugénie Grandet", o romance de Balzac; a França belicosa da Escola de Cavalaria e do Museu dos Tanques de Saumur. A França que leva seus filhos a escolas integralistas e obedece ao "châtelain", o senhor do castelo, que manda mais que o prefeito.
Nesse feudo medieval do rei René, salpicado de muralhas que parecem tiradas do jogo Exin Castles, ocorreu há 75 anos uma história exemplar ou assustadora, conforme se veja. A história envergonhou tanto as pessoas que ninguém falou dela durante décadas.
Em 6 de janeiro de 1940, o capitão republicano espanhol Manuel G. Sesma, nascido em Fitero (Navarra), chegou a Montreuil-Bellay vindo do campo de Gurs, no comando da Oitava Seção da 184ª Companhia de Trabalhadores Espanhóis, formada por 250 pessoas. Sesma tinha saído da Espanha em fevereiro de 1939. Em 1983, o capitão contou a Jacques Sigot, professor de escola e historiador local, que os espanhóis levantaram em seis meses 19 quilômetros de vias férreas, "movendo com as mãos trilhos que pesavam 700 quilos".
Aquele terreno abrigaria o pessoal de um arsenal de pólvora, mas o avanço alemão fez os franceses mudarem de ideia, e em junho de 1940 estes mandaram construir um campo de concentração para "indivíduos sem domicílio fixo, nômades e estrangeiros que tenham o tipo romani". Os espanhóis só tiveram tempo de levantar a prisão subterrânea, segundo conta Sesma no livro de Sigot, "Um Campo de Concentração Durante a Segunda Guerra Mundial".
Entre 8 de novembro de 1941 e 16 de janeiro de 1943, o lugar se transformou no maior campo de concentração de ciganos da França. Mas sua história permaneceu oculta até que Sigot descobriu as ruínas nos anos 1980. Os restos do campo são patrimônio nacional desde 2012.
Mas não são nada fáceis de encontrar. Além da prisão subterrânea, só restam os alicerces e o piso de um dos barracões e três lances de escadas. O cárcere tem forma de caverna - troglodita, como as chamam aqui - e nas rochas há alguns nomes gravados: Duval, Reinhard... "Talvez fossem primos do grande guitarrista Django Reinhardt", diz Kris Mirror, um desenhista de quadrinhos e ativista pró-ciganos nascido em Saumur, que em 2008 publicou o livro "Tsiganes", que narra em preto e branco a história de Montreuil-Bellay.
Mirror, que veio de sua casa em Brézé em sua Harley-Davidson, tinha suas razões para se interessar pelo assunto. "Meu pai esteve internado em um campo alemão durante a guerra. Escapou por milagre, e eu comecei a desenhar sua história aos 10 anos. Depois soube que ao lado de casa houve um campo de concentração, organizado não por alemães, mas por franceses. E mais tarde me inteirei de que meus vizinhos - o salsicheiro, o carpinteiro... - tinham trabalhado nele como guardas. Então decidi fazer o livro."
Mirror é um dos artistas que em 2010, como réplica aos ataques de Nicolas Sarkozy contra os romanis [ou ciganos], montaram uma plataforma para resgatar a memória da perseguição. O padrinho foi o cineasta Toni Gatlif (que narrou a história cigana em filmes como "Liberté" e "Latcho Drom"), e também colaboraram o autor de quadrinhos Emmanuel Guibert e o fotógrafo Alain Keler, autores de "Uma Viagem entre Ciganos".
"Na França, as perseguições aos ciganos começaram muito antes da ocupação", escreveu a historiadora Marie Christine Hubert. "Já em setembro e outubro de 1939 a circulação de nômades foi proibida em várias províncias. Os ciganos da Alsácia-Lorena foram expulsos em julho de 1940 para a zona livre."
Esse ciganos compartilharam campos com os republicanos espanhóis em Argelès-sur-Mer, Barcarès ou Rivesaltes antes de ser levados, em novembro de 1942, para o campo de Saliers (perto de Arles), "especialmente criado por Vichy para os ciganos", lembra Hubert.
A infâmia não foi exclusiva do Loire, nem da França. O fantasma da ciganofobia percorre a Europa em paralelo ao antissemitismo e à islamofobia há dez séculos. O medo dos que viajam em carroças, dormem no chão e cantam para a lua faz parte das raízes cristãs da Europa.
França e Alemanha, inimigas íntimas em tantas guerras, viveram a mesma obsessão ao mesmo tempo. Ian Hancock, professor na Universidade do Texas, escreveu que a caça aos ciganos na Alemanha foi o primeiro anúncio do que viria: "Durante a República de Weimar, que instaurou a igualdade dos cidadãos diante da lei, a polícia da Baviera e depois a da Prússia abriram departamentos especiais para controlar os ciganos. Eram fotografados e suas impressões digitais eram tiradas como se fossem criminosos. Em 1920 os proibiram de entrar nos parques e nos banheiros públicos. Em 1925 foram enviados para campos de trabalho. Em 1935 os nazistas resgataram leis anticiganas de origem medieval para oprimi-los."
Hoje os ciganos são notícia - ou rumor - pelos mesmos boatos e lendas de 500 anos atrás: se têm uma filha loura é porque roubam crianças. Se não, como disse o ministro do Interior francês, Manuel Valls, é que "são culturalmente diferentes e não querem se integrar".
"E pensar que eu votei em 2012 nos socialistas!", exclama Mirror. "Dá pena ver que o racismo anticigano continua saindo grátis e é politicamente rentável. É lamentável, porque os ciganos costumam ser o primeiro sinal de alarme de que algo terrível vai acontecer. Quando os republicanos chegaram a Montreuil-Bellay, a França não estava em guerra e ainda não existia Vichy. As leis raciais foram aprovadas pela Terceira República. O decreto é de 6 de abril de 1940. Mas a primeira lei racial do século 20 foi aprovada em 1912, dois anos antes da Primeira Guerra Mundial. E ainda continua vigente."
O Terceiro Reich exigiu que os ciganos cumprissem um requisito que duplicava o exigido aos judeus para classificá-los como não arianos: se dois de seus bisavós fossem parcialmente ciganos, não poderiam ser salvos. Até hoje os números do Holocausto cigano - "Porrajmos", a devoração, no dialeto caló - continuam sendo aproximados, embora, segundo escreveu Simon Wiesenthal a Elie Wiesel em 1984, "os ciganos foram assassinados [em uma proporção] semelhante à dos judeus; em torno de 80% [morreram] na área de países ocupados pelos nazistas".
Os dados de Hubert indicam que "pelo menos 6.500 pessoas viveram entre 1940 e 1946 em 30 campos de concentração franceses por causa de sua pertença, real ou imaginária, ao povo cigano. Seus bens foram expropriados e sofreram a maior precariedade material e moral". Em Montreuil-Bellay, os moradores pagavam entrada para vê-los, conta Mirror em seu livro. Hubert: "As crianças recebiam uma educação católica nos campos. E em casos extremos eram separadas de seus pais e entregues ao serviço social ou a instituições religiosas, para tirá-las definitivamente de um meio que se considerava pernicioso".
Como aconteceu hoje com a chegada dos socialistas ao poder, a resistência, a libertação e a paz não foram de grande ajuda para os "tsiganes". Os últimos estiveram encerrados no campo de Alliers, perto de Angoulème, até maio de 1946, nove meses depois da Liberação.
O campo de Montreuil-Bellay havia sido fechado muito antes, lembra Kris Mirror: "Quando transferiram os ciganos, o diretor do campo, um petainista transformado em resistente, decidiu encerrar ali as prostitutas da região e se pôs a administrar o bordel. A epidemia de sífilis foi tão brutal que as mulheres dos povoados exigiram que fosse fechado".

Texto de Miguel Mora, para o El País, reproduzido no UOL. Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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