sábado, 23 de novembro de 2013

Opinião da vaca

Não aprecio memórias, quando entendidas como gênero literário. Evidente que sou obrigado a respeitar os grandes momentos que Santo Agostinho e Rousseau nos deixaram. Mas é um respeito distante, formal. Que nada tem a ver comigo. Volta e meia me distraio com os memorialistas, e alguns são excelentes, podendo citar Gilberto Amado, Afonso Arinos, Humberto de Campos e Joaquim Nabuco, para citar autores nacionais. Mas há um esquema interior e anterior, estrutural, que me impede a total empolgação pelo gênero.
Ao escrever memórias, o autor fatalmente se coloca numa posição absurdamente cômoda, inclusive para fazer restrições à própria vida. Até Malraux, que levava um jeito de ensaísta para o romance ("A Condição Humana"), ao fazer as suas "Antimemórias" blefou bastante --um profissional percebe isso.
Vai daí, e embora esteja longe do tempo de pensar em memórias, bolei uma contrafação para o gênero. Pode parecer uma molecagem literária --e vai ver que é. Em vez de escrever memórias, pretendo escrever um robusto ensaio histórico intitulado: "Cony e seu tempo". Será assinado por um pseudônimo, um sujeito muito mal informado sobre o meu tempo e principalmente sobre a minha pessoa. O importante, no caso, não será o personagem em si, mas o tempo em que o personagem viveu, ou seja, o nosso tempo, o meu tempo.
No fundo, esta ideia que me persegue é subproduto de um romance que está em gestação há tempo: "Opinião da vaca sobre a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, nos finais do século 20". Seria uma comovente confissão de uma saudável e pródiga vaca que emitiria juízos e sábias sentenças sobre fatos, homens e coisas do nosso tempo.
Talvez a opinião de uma vaca seja mais aproveitável do que a do autor que vou inventar para narrar os nossos probleminhas mesquinhos e pessoais. Em geral, o romancista inventa uma história. Eu inventarei um autor que, com uma dose bastarda de informação e conhecimento, procurará interpretar a vida de um pobre coitado que se espalhou por aí, no tranco da vida.
Tem mais: o memorialista, quando pega da pena ou abre o computador e mete os peitos em sua própria biografia, sempre se detém antes do fim. Por motivos óbvios não escreve sobre o fato mais importante de sua vida, que é a própria morte, esperando viver o suficiente para ser compreendido pelos contemporâneos, sobretudo depois que resolveu se explicar em público. A menos que recorra a um tipo de memórias póstumas, como fez Machado de Assis, que tentando contar sua vida, deixou em aberto um enigma que até hoje não foi decifrado.
No meu caso será diferente. O autor que escreverá o livro sobre a minha pessoa é tão papo furado que narrará minha doença, desenlace, e o olvido fatal dos dez primeiros anos depois da morte, e depois, lentamente, a restauração, a revisão histórica do personagem e da obra --tudo na base bastarda anunciada. Afinal, será a opinião de uma vaca.
Assim, a posteridade que me esperará --segundo o autor de "Cony e seu tempo"-- pensará que fui um sujeito completamente diferente do que sou. Basta dizer que, por um erro qualquer de classificação bibliográfica, eu serei tido como autor do Ato Institucional nº.1 e do Projeto da Anistia. De quebra, também me serão creditados alguns sambinhas de Antonio Carlos e Jocafi e minha glória maior terá sido o meu casamento com a Marília Gabriela --um acontecimento tão relevante quanto a bomba atômica, a penicilina e a polêmica sobre as biografias autorizadas.
É glória demais. De qualquer forma, acho que mereço essa consagração tardia e punitiva. No fundo, será a opinião de uma vaca, não muito diferente da minha.


Texto de Carlos Heitor Cony, na Folha de São Paulo

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