Adorável 'Jovem e Bela'
"Jovem e Bela", de François Ozon, conta uma temporada na vida de uma
adolescente: Isabelle, 17 anos, tem seu primeiro namorico de verão e se
prostitui no outono e inverno seguintes. Marine Vacth, a atriz, além de
jovem e bela, é adoravelmente emburrada, como só os adolescentes
franceses conseguem ser.
Aviso aos espectadores: entre ela, o comportamento de seus pais, a
classe do colégio discutindo um poema de Rimbaud e a paisagem, o filme
pode matar qualquer um de saudade de Paris e da França. Agora, alguns
pontos (sem "spoilers").
1) O namorico de Isabelle durante o verão é sinistro, como a maioria dos
namoricos de praia entre adolescentes. Isabelle olha para sua primeira
transa como uma espectadora que não acredita na miséria do que está
acontecendo. Cá entre nós, qualquer coisa é melhor e mais interessante
do que aquilo --talvez até se prostituir num estacionamento.
2) Durante esse verão, Isabelle se irrita quando a mãe manifesta uma
curiosidade bestamente cúmplice: cadê aquele jovem alemão bonito? Os
pais adoram que os namoradinhos se incorporem ao cotidiano da família:
eles esperam que o lar acabe domesticando o desejo sexual das filhas.
Mais tarde, no filme, Isabelle não aguenta a visão de seu novo namorado
de pijama na mesa de família. Para completar, o namorado vai jogar
videogame com o irmãozinho de Isabelle. Essa prática nefasta é
frequente; conselho: meus amigos, decidam-se, cresçam ou caiam fora,
joguem com o irmão ou namorem com a irmã.
Com a desculpa de que a rua de noite é insegura, os pais permitem e
aprovam que muitos adolescentes brinquem de marido e mulher no seu
quarto de crianças. O que tem de errado em deixar o namoradinho dormir
com a namoradinha? Nada, mas é isso mesmo que se faz na casa dos pais:
dormir --não transar. Para descobrir o que é sexo, é melhor sair de
casa.
Por que condenar os adolescentes a começar sua vida sexual "em família", ou seja, dormindo?
3) Isabelle diz que ela podia até não gostar de se prostituir, mas, uma
vez de volta ao lar, ela estava a fim de recomeçar. É uma definição
perfeita da fantasia erótica: a realização pode não dar prazer, mas a
gente fica a fim de recomeçar, sobretudo quando se afoga na mesmice.
4) Para encontrar clientes, Isabelle tem um perfil (sem rosto) num site.
Receamos que a internet seja o paraíso dos predadores de crianças. Mas o
inverso talvez tenha se tornado mais frequente: menores disfarçados
como maiores se oferecem para sexo, por dinheiro ou não.
5) Engraçado. Podemos duvidar da maturidade de alguém de 17 anos para se
prostituir ou mesmo para transar, a não ser que isso aconteça com o
namorado de pelúcia --aquele que, de manhã, joga videogame com o
irmãozinho.
Ao mesmo tempo, queremos que esse alguém de 17 anos, na escola, leia
"Roman", que Rimbaud escreveu, justamente, aos 17 anos. Mathilde Mauté, a
mulher de Paul Verlaine, tinha 17 anos e estava grávida quando Rimbaud,
17 anos, chegou na casa de Verlaine para começar a tórrida e famosa
história de amor dos dois amigos.
Seria bom decidir um dia o que queremos e esperamos de um adolescente.
6) A partir de que idade, para nossas leis, um jovem pode livremente
consentir a ter sexo com coetâneos e adultos? A idade do consentimento
sexual, na França, é 15 anos. No Brasil, há muito tempo, ela é de 14.
Aposto que muitos imaginavam que fosse mais tarde.
Tanto a lei francesa quanto a brasileira levam em conta uma
vulnerabilidade dos jovens até os 18 anos. E considera-se que a
prostituição se aproveite dessa vulnerabilidade. Ou seja, é permitido
que um adulto transe com alguém de 17 anos que consinta por amor (por
exemplo). Mas não se a transa for por dinheiro.
Não tenho nenhuma simpatia pela prostituição de adolescentes. Mas não
deixa de ser bizarro: se a idade do consentimento é 14 ou 15 anos, por
que a liberdade de se prostituir começaria só aos 18? Duas respostas
possíveis.
A primeira é que somos ingênuos. Acreditamos que transar com alguém "por
amor" não signifique se aproveitar de sua vulnerabilidade. Tendo a
pensar o contrário: o amor, pretenso ou "verdadeiro", sempre foi uma
arma para pegar inocentes desprevenidos.
A segunda resposta é que, apesar de nossa suposta liberação, somos
escandalizados pela ideia de que haja desejo sexual e sexo sem a boa
desculpa do envolvimento emocional. Eles podem transar porque se amam.
Agora, transar só para transar é coisa de puta, não é?
Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo.
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