quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Guerra na Síria acirra embates entre sunitas e xiitas no Oriente Médio

Cerca de cem pessoas morreram na disputa que, desde o início do mês, confronta os rebeldes xiitas dos Huthis e um grupo salafista no noroeste do Iêmen. O incidente, mais um dos que sofre esse infortunado país, foi considerado outro episódio da divisão entre sunitas e xiitas que atravessa o Oriente Médio. Entre os observadores se instalou uma espécie de fatalidade que vê essa parte do mundo destinada a uma guerra de religião. Mas a fratura confessional não é um desígnio inexorável, e sim o fruto de políticas deliberadas que correm o risco de se transformar em uma profecia autocumprida.
"É muito difícil enquadrar a luta entre salafistas e Huthis como parte de uma divisão religiosa entre sunitas e xiitas no Iêmen ou na região", explica o cientista político iemenita Abdullah al Faqih em um e-mail. "A maioria das pessoas os vê como marginais dentro de suas respectivas confissões", acrescenta, convencido de que o atual choque está mais "ligado à luta política interna pelo poder".
Os rebeldes, conhecidos como Huthis devido ao nome do clã que liderou sua revolta há duas décadas, são xiitas zaiditas (seguidores do imame Zaid Bin Ali), como um terço da população do Iêmen. Quando o agora ex-presidente Ali Abdalah Saleh (um zaidita) tomou o poder em 1978, utilizou essa comunidade para conter a pressão dos salafistas (sunitas radicais animados pela vizinha Arábia Saudita). Com o tempo, o próprio Saleh recorreu aos salafistas para abafar suas queixas de discriminação e os acusou de receber ajuda do Irã. Agora a centelha explodiu pela atividade em sua região de um seminário sunita que é visto como um cavalo de Troia.
"Existe uma brecha entre sunitas e xiitas", admite Al Faqih, "o problema é que se exageram os aspectos confessionais sobre os políticos."
Estes se resumem na concorrência pelo poder e influência regional entre Irã e Arábia Saudita. Essa rivalidade, que precede a revolução iraniana de 1979, se agravou a partir de então porque a família real saudita viu uma ameaça no modelo de "governo islâmico" instaurado por Khomeini.
Não era tanto o desejo deste de exportar seu projeto, quanto o risco de que as ideias revolucionárias calassem entre a minoria xiita do reino e do resto da região. Amparada pela rejeição de seus ulemás a qualquer outro ramo do islã que não seja sua exagerada interpretação sunita (ou wahabismo) e que considera os xiitas hereges, a monarquia jogou a carta confessional dentro e fora do país.
Embora o discurso sectário saudita tenha se moderado um pouco depois do 11 de Setembro, a invasão americana ao Iraque em 2003 e o conseguinte acesso ao poder da maioria xiita desse país reavivaram seus temores. Riyad, que ainda não reabriu sua embaixada em Bagdá, alinhou-se claramente com os extremistas sunitas que levaram o país à beira da guerra civil (um perigo que espreita de novo devido à exclusão política dessa comunidade).
A guerra na Síria volta a evidenciar ao antagonismo entre duas visões não tanto do islã, como da gestão do poder terreno. Apesar de sua rejeição à Primavera Árabe, a Arábia Saudita está apoiando os rebeldes que lutam contra Bashar el Assad. Entretanto, apressou-se a enviar cerca de mil soldados ao Bahrein para defender a monarquia (sunita) das exigências de maior participação política de uma população majoritariamente xiita.
Não por acaso, Assad é o principal aliado do Irã na região. Por isso é muito conveniente apresentá-lo como um ditador xiita que oprime a maioria sunita do país, apesar de que seu regime, como antes o de seu pai, ser fundado em uma ideologia pan-árabe e laica, e a afiliação alauíta da elite governante só seja aparentada de longe com o xiismo.
O regime sírio também está manipulando as identidades sectárias para assustar suas minorias, sobretudo os cristãos, com o avanço islâmico sunita. Mas o apoio que recebe do Irã não vem em função da afinidade confessional, senão de interesses compartilhados na resistência a Israel e ao Ocidente. A mesma razão estratégica respalda o apoio ao Hizbollah libanês (xiita) e, até recentemente, ao Hamas palestino (sunita).
"O sectarismo é a maior ameaça, não só para a região como global", declarou o ministro iraniano das Relações Exteriores, Mohamed Javad Zarif, em uma entrevista à BBC.
É claro que o Irã não ficou imune a esse vírus. Alguns aiatolás radicais emitiram "fatwas" animando os xiitas a lutar contra os extremistas sunitas, mas o "jihadismo xiita" é mais uma reação e não conta com apoio político. Ao contrário, os dirigentes iranianos evitam apresentar a situação na Síria como um confronto entre sunitas e xiitas. Inclusive o líder supremo, aiatolá Ali Khamenei, advertiu seus vizinhos do risco de que o uso do sectarismo se volte contra eles.
É uma opção que também se baseia na demografia. Os xiitas são cerca de 15% dos 1,5 bilhão de muçulmanos no mundo, embora a maioria esteja no Irã, Iraque e Bahrein. Se os líderes iranianos aspiram a ter influência na região, é lógico que busquem a aliança com forças islâmicas à margem da identidade confessional. O contrário seria cair em uma armadilha.
A Arábia Saudita se preocupa de que o discurso de Teerã consiga esfumar as linhas divisórias étnicas e sectárias. E a possibilidade de que o Irã se reintegre à comunidade internacional depois de décadas de ostracismo só contribui para aumentar sua obsessão. Se não se romper logo esse círculo vicioso, poderá acabar se tornando realidade que o confronto dos Huthis com os salafistas iemenitas, e outros, faça parte de uma guerra de religião.
O rito de uma minoria visto com receio
Se há uma cerimônia que define os xiitas é Ashura, o ritual comemorativo da decapitação de Husein, o terceiro de seus imames, nas mãos da dinastia sunita dos Omeya. Este ano, a Ashura caiu na última quinta-feira, décimo dia do primeiro mês do calendário islâmico (muharram). Milhões de xiitas saíram em procissão no Iraque, Irã, Paquistão, Líbano, Bahrein e outros países.
Os penitentes se fustigam, sofrendo a dor que Husein e seus seguidores sentiram durante a batalha ocorrida há 1.400 anos em Kerbala (Iraque) e que decidiu a disputa dinástica que se arrastava desde a morte de Maomé, deixando o islã dividido em dois ramos.
Os partidários de Ali, que é o que significa "xiitas", consideravam que, enquanto primo e genro do profeta, ele deveria ser o novo califa. Seus rivais, conhecidos como sunitas (de "sunna", tradição ou costume), rejeitavam o requisito dos laços de sangue, e por isso mataram primeiro Ali e depois seu filho Husein.
Desde então essa divisão permaneceu no subconsciente coletivo, animada por interesses políticos. A minoria xiita ainda é vista com receio pelos sunitas, cujos extremistas os chamam de hereges e todo ano atentam contra suas procissões no Iraque e no Paquistão. Sob Saddam Hussein, os xiitas iraquianos não podiam comemorar a Ashura. Ainda hoje encontram limitações para suas liturgias na Arábia Saudita e são discriminados no Paquistão.

Reportagem de Ángeles Espinosa, para o El País, reproduzida no UOL. Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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