Mais de meio século se passou desde que o chefe dos correios desse vilarejo à beira mar no extremo norte gelado do Japão puxou um homem de lado e compartilhou um segredo. Em algum lugar do vilarejo, confidenciou o velho, havia um cemitério perdido que escondia ossos coreanos.
Levou anos para que Koichi Mizuguchi entendesse a importância daquela afirmação, e décadas mais para extrair a verdade repugnante dos seus vizinhos reticentes: pelo menos 80 trabalhadores coreanos haviam morrido de maus-tratos e desnutrição enquanto construíam uma pista de pouso no vilarejo sob ordens dos militares japoneses durante a 2ª Guerra Mundial. Eventualmente, Mizuguchi ajudou a encontrar os túmulos. Ele e outros moradores começaram a construir um memorial de pedra de 1,80 metro de altura no local.
Há uma década, um vilarejo que tentasse preservar a memória de seus pecados de guerra poderia ter passado despercebido no Japão. Mas a minúscula prefeitura do vilarejo de Sarufutsu foi inundada no ano passado de telefonemas de ameaças que denunciavam os moradores como traidores. A campanha, orquestrada na internet, também pediu um boicote à indústria de vieiras do vilarejo. Abalado, o prefeito ordenou a paralisação da construção do monumento.
Aceitar seu passado militar nunca foi fácil para o Japão, que tentou deixar de lado as questões levantadas pela guerra enquanto reconstruía o país e o transformava na nação pacífica e próspera que é hoje. Mas a pressão para apagar os episódios sombrios da história dos tempos de guerra se intensificou recentemente com a ascensão de um movimento pequeno, porém agressivo na internet, que busca intimidar aqueles que, como Mizuguchi, acreditam que o país não deve esquecer o passado.
Conhecido coletivamente como Net Right, esses ciberativistas organizados livremente já foram descartados como radicais à margem do cenário político japonês. Mas eles ganharam uma influência fora do comum com a ascensão do governo conservador do primeiro-ministro Shinzo Abe, que compartilha do objetivo de acabar com os retratos negativos da história do Japão, e com a condescendência de uma sociedade desinteressada demais ou com medo de falar.
"Estamos cansados de dizerem constantemente para o Japão se desculpar", diz Kazuya Kyomoto, 26, um blogueiro popular entre a juventude conservadora que condena monumentos como este em Sarufutsu por promover uma visão "masoquista" da história do Japão. Ele acrescenta que apenas alguns extremistas muito fervorosos usaram táticas de intimidação.
Kyomoto e outros disseram que seu ressentimento foi alimentado em parte pela intensificação das disputas quanto à história e ao território com a China e a Coreia do Sul, duas antigas vítimas da construção do império japonês no início do século 20 que agora parecem estar superando-o economicamente.
"A Net Right dá voz às preocupações do Japão com seu próprio declínio", diz Shojiro Sakaguchi, um estudioso da Universidade de Hitotsubashi, em Tóquio.
Os extremistas, que se organizam em sites ultranacionalistas e às vezes combatem os coreanos étnicos no Japão com um discurso de ódio racista, têm mais influência que antes em parte por causa do colapso da oposição política de tendência esquerdista, que se desorganizou depois de uma derrota eleitoral estrondosa há dois anos e de um período malsucedido no poder.
"Desde que Abe se tornou primeiro-ministro, tudo se tornou muito exaltado e reacionário", disse Yasuhito Maeda, 90, ex-vice-prefeito de Sarufutsu. Ele também é autor de um livro publicado há duas décadas que descreve em detalhes o uso de trabalhadores forçados da Coreia e de presos japoneses para construir a pista de pouso de Asajino no vilarejo.
Funcionários do vilarejo de 2.400 habitantes na ilha de Hokkaido disseram que não mais de 100 pessoas estão por trás dos telefonemas que congestionaram suas linhas. Mas Akira Tatsumi, prefeito na época, disse que as acusações de traição – em parte derivadas do fato de que o vilarejo aceitou dinheiro do governo sul-coreano para construir o monumento – acabaram fazendo com que ele desistisse.
"Esta é uma luta que um pequeno vilarejo não pode travar sozinho", disse Tatsumi.
Poucos – se é que algum dos ativistas usaram seus nomes verdadeiros nos sites que organizaram os telefonemas. Mas um deles, Mitsuaki Matoba, concordou em ser entrevistado por e-mail, descrevendo-se como um médico de 60 anos que vive em Hokkaido. Ele defendeu as táticas de pressão da Net Right, dizendo que são a única forma de se fazerem ouvir diante dos meios de comunicação tradicionais que repetem falsidades sobre as ações do Japão durante o período de guerra.
Mizuguchi, o arquiteto que ficou sabendo sobre os coreanos pelo chefe dos correios do vilarejo, ajudou a organizar três escavações do túmulo entre 2006 e 2010. Centenas de pesquisadores japoneses e sul-coreanos participaram, encontrando 38 ossadas.
Em uma visita recente ao local, hoje uma paisagem bucólica de fazendas de gado leiteiro, ele diz que não desistiu de construir o monumento.
"Esses forasteiros estão tentando nos intimidar para fecharmos os olhos novamente", disse ele, de pé ao lado dos túmulos escavados cobertos com plástico azul. "Não podemos deixar que eles impeçam nossa reconciliação com o passado."
Reportagem de Martin Fackler, para o The New York Times, reproduzido no UOL. Tradutor: Eloise De Vylder
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