sábado, 29 de novembro de 2014

Morte sob suspeita

MINHA HISTÓRIA LEANDRO FARIAS

Morte sob suspeita

A espera de 28 horas levou Ana a uma infecção generalizada. Ela percebeu o que estava acontecendo. O seu pai havia morrido da mesma maneira
CLÁUDIA COLLUCCIDE SÃO PAULO

RESUMO Em agosto, Leandro Farias, 25, viu a mulher, a também farmacêutica Ana Carolina Cassino, 23, morrer de sepse (infecção generalizada), após esperar 28 horas por uma cirurgia de apendicite. A demora teria levado à infecção. Para a família, houve negligência. Farias criou o movimento Chega de Descaso, que recebe denúncias pelo país. Nesta sexta, ele coordena um protesto no Cremerj. A Polícia Civil também investiga o caso.

-

No dia 15 de agosto, a Ana Carolina acordou se sentindo mal, com forte dor no abdome, náuseas e vômito. Fomos para a unidade de pronto-atendimento da Unimed, na Barra da Tijuca [Rio].
Entramos às 13h30. O ambiente estava lotado, caótico. Logo demos de cara com um computador em que você pega uma senha, como em um banco. Passamos por triagem que foi feita por enfermeira.
Mesmo relatando fortes dores a ponto de não conseguir andar e nem ficar de pé, minha mulher ganhou o adesivo de cor amarela, sugerindo que o caso não era grave.
Após uma hora, fomos atendidos por uma médica, que suspeitou de apendicite. Pediu exames de sangue e uma tomografia. Após quatro horas, às 17h30, a apendicite aguda foi confirmada.
A taxa de leucócitos estava acima de 20 mil [o valor de referência era até 11 mil]. A tomografia mostrou o apêndice distendido e presença de líquido no abdome.
Novamente tivemos que esperar o trâmite burocrático para encontrar um leito em um dos hospitais da rede Unimed, agendar a cirurgia e aguardar uma ambulância.
Apenas às 23h Ana foi transferida para o hospital onde ocorreria a cirurgia. Ao ser internada no Hospital Unimed Barra, ficamos sabendo que a cirurgia tinha sido agendada para às 15h do dia seguinte. Não havia médico para operar antes.
Quando faltava uma hora para a cirurgia, no dia 16, Ana piorou. Teve uma queda brusca da pressão e desmaiou.
Realizaram manobras de reanimação e ela voltou lúcida, porém muito inchada por causa dos litros de soro fisiológico que recebeu. Foi uma imagem chocante, quase não reconheci a minha mulher.
Ela foi ao centro cirúrgico às 17h30; 28 horas após sua entrada e 24 horas após o diagnóstico. [O protocolo médico contra a sepse determina que se deve fazer a operação em até 12 horas.]
Ana já sabia que estava com sepse. O próprio médico havia contado. Ela me disse que havia pedido ao médico para evitar falar a palavra sepse para a mãe. O pai dela havia morrido quatro anos antes pela mesma causa.
Ainda me disse: "Vai dar tudo certo, amor". Foi a última frase que ouvi dela. Já saiu da cirurgia, uma simples cirurgia de apendicite, entubada e foi encaminhada direto para o CTI [centro de terapia intensiva]. Às 5h do dia 17 recebemos a notícia da sua morte. Choque séptico.
Enfrentamos resistência do hospital para entregar o prontuário. Alegaram que, em caso de óbito, se a paciente não deixou por escrito autorização, só com mandado judicial. Qual jovem de 23 anos irá imaginar que morrerá de apendicite? Após o caso ir para a mídia, o hospital liberou.
Ao analisarmos o prontuário, vimos que a Ana Carolina vinha piorando desde a sua internação. Apresentou sucessivas quedas de pressão, o que já indicava processo de infecção generalizada.
Ana foi mais uma vítima de descaso. Sua história reflete a face mais cruel dessa comercialização da saúde. Nada justifica essa demora absurda. Um médico ainda disse que, pela idade e pelos exames, ela poderia ter esperado até 48 horas pela cirurgia!
A questão é que está disseminado nos hospitais o plantão de sobreaviso [o médico fica fora do hospital, à disposição]. Em hospitais privados, cirurgias de emergência vêm sendo agendadas porque não há médico para atender de imediato.
Fizemos denúncia e o Cremerj (Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro) abriu uma sindicância. Mas descobrimos que muitos conselheiros do Cremerj são também diretores da Unimed. Como pode um órgão fiscalizador ser composto por membros do fiscalizado?
Criamos pela internet o Movimento Chega de Descaso e estamos reunindo denúncias. Queremos evitar que outros casos assim voltem a acontecer. É também uma forma de dar algum sentido a essa morte estúpida.


Reprodução da Folha de São Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário