No início do mês passado, um quarto de século depois da morte do imperador Hirohito em 1989, a Agência da Casa Imperial do Japão divulgou a história oficial da vida do imperador. Os 61 volumes contêm grande riqueza de documentos que até então não estavam disponíveis e algumas anedotas fascinantes: quem sabia que a família imperial trocava presentes de Natal pelo menos desde 1907? A mídia japonesa vem destrinchando-a.
Eu não me debrucei sobre os livros, mas acadêmicos já estão observando que eles evitaram deliberadamente tratar do papel de Hirohito nas ações do Japão antes e durante a 2ª Guerra Mundial.
Algumas semanas atrás, o historiador Herbert Bix escreveu em um artigo para este jornal que havia recebido um e-mail de um "funcionário de um dos maiores jornais do Japão" pedindo que ele comentasse um trecho censurado da história da vida de Hirohito. "Mas havia uma condição", explicou Bix. "Eu não poderia discutir o 'papel e a responsabilidade' dele na 2ª Guerra Mundial." Então Bix se recusou, disse ele. Cerca de 70 anos depois do fim da guerra, o assunto é considerado tabu na mídia tradicional japonesa.
O que torna ainda mais notável o fato de que quase quatro décadas atrás, um jornalista japonês chamado Koji Nakamura tenha feito a Hirothito a pergunta que ninguém ousava fazer. Em 31 de outubro de 1975, poucas semanas depois de uma visita aos Estados Unidos, Hirohito e sua mulher deram uma entrevista coletiva à imprensa no palácio. Nakamura, que participou como representante do London Times, foi um dos poucos repórteres convocados para fazer uma pergunta que estava fora do roteiro.
"Na Casa Branca, vossa majestade se referiu à 'guerra mais infeliz, que eu lamento profundamente'", ele começou. "Podemos interpretar isso como o senhor dizendo que se sente responsável pela guerra, incluindo o fato de que o Japão foi o responsável por iniciá-la? Além disso, posso pedir para que o senhor compartilhe seus pensamentos sobre a chamada responsabilidade sobre a guerra?"
Em certo sentido, a pergunta foi inútil. Hirohito não respondeu nada significativo: "como não mergulhei muito nas questões literárias, esses pequenos truques de linguagem estão além de minha capacidade, e não saberia responder uma pergunta como esta."
Mesmo assim este foi um momento sem paralelos na história do Japão pós-guerra. Embora Hirohito tenha vivido mais 14 anos, até onde sei ele não deu mais entrevistas coletivas à imprensa; se o jornalista tivesse ficado quieto, o imperador teria morrido sem que nunca um cidadão japonês tivesse pedido em público que ele assumisse a responsabilidade por seus erros catastróficos. A pergunta de Nakamura pode ter ficado sem resposta, mas ele merece um lugar na história simplesmente por tê-la feito.
Em vez disso, ele foi quase esquecido. O único repórter que comentou o desafio de Nakamura a Hirohito foi David Tharp, o único participante que não era japonês naquela coletiva de 1975. Em um artigo publicado na manhã seguinte no jornal em língua inglesa Mainichi Daily News, ele disse que Nakamura havia "deixado de lado" o "maior tabu dos círculos jornalísticos japoneses". Ele descreveu a reação de seus colegas japoneses: "foi a única pergunta que pareceu congelar os repórteres com um interesse coletivo. As canetas ficaram paradas sobre os bloquinhos como se não soubessem como se mover por um breve instante." Ele acrescentou, "então houve uma espécie de relaxamento mútuo porque a pergunta que todos estavam secretamente ansiosos para ouvir finalmente havia sido feita."
Passei o último mês tentando buscar informações sobre Nakamura. Não consegui contatar David Tharp, e um e-mail que enviei para o escritório do jornal em Tóquio ficou sem resposta. Mas consegui me encontrar com antigos colegas e conhecidos, e juntar alguns fatos sobre a primeira metade da vida incomum deste jornalista.
Nakamura nasceu em 1918. Quando tinha 13 anos conseguiu um emprego como faz-tudo no escritório do jornal Mainichi, em Kobe. Em seu tempo livre, ele fazia aulas de inglês na escola de línguas estrangeiras da YMCA e no Instituto Palmore. Em 1942, o Mainichi o enviou para Manila para trabalhar em um novo jornal local. Ele permaneceu após a derrota do Japão na 2ª Guerra Mundial, trabalhando como intérprete para os soldados acusados de crimes de guerra; muitos dos quais não falavam inglês.
Ele escreveu sobre esta experiência depois de voltar ao Japão, em 1949. Desses textos parece que, além de servir como intérprete nos julgamentos, ele também traduziu cartas que soldados escreviam "em uma prisão especial com uma forca" imediatamente antes de serem enforcados. Sua tarefa era escrever os desejos finais ditados pelos presos.
Ele estava bastante ciente da brutalidade da matança de Manila em fevereiro de 1945, no qual soldados japoneses massacraram cerca de 100 mil civis. O maior horror daquele acontecimento, escreveu ele, vinha do fato de que o militarismo do Japão, ligado a um culto ao imperador como um deus vivo, era destituído de qualquer respeito ao "valor ou à santidade da vida humana."
Consegui montar uma linha do tempo das reportagens que Nakamura fez como correspondente especial até morrer de câncer no estômago em 1982, aos 63 anos. Reuni textos seus suficientes para perceber que a pergunta que fez a Hirohito naquela coletiva à imprensa em 1975 veio de sua consciência, baseada em sua própria experiência, de todo o mal que aquele outro homem havia causado. Sei que nunca conseguirei compilar um registro adequado da vida de Nakamura --certamente nada tão extenso quanto a vida oficial de Hirohito. Mas para mim, o fato de Nakamura ter feito aquela pergunta é uma contribuição tão grande para a história quanto aqueles 61 volumes, que parecem tão determinados, como o próprio Hirohito, a não respondê-la.
Texto de Norihiro Kato para o The New York Times, reproduzido no UOL. Tradutor: Eloise De Vylder.Eu não me debrucei sobre os livros, mas acadêmicos já estão observando que eles evitaram deliberadamente tratar do papel de Hirohito nas ações do Japão antes e durante a 2ª Guerra Mundial.
Algumas semanas atrás, o historiador Herbert Bix escreveu em um artigo para este jornal que havia recebido um e-mail de um "funcionário de um dos maiores jornais do Japão" pedindo que ele comentasse um trecho censurado da história da vida de Hirohito. "Mas havia uma condição", explicou Bix. "Eu não poderia discutir o 'papel e a responsabilidade' dele na 2ª Guerra Mundial." Então Bix se recusou, disse ele. Cerca de 70 anos depois do fim da guerra, o assunto é considerado tabu na mídia tradicional japonesa.
O que torna ainda mais notável o fato de que quase quatro décadas atrás, um jornalista japonês chamado Koji Nakamura tenha feito a Hirothito a pergunta que ninguém ousava fazer. Em 31 de outubro de 1975, poucas semanas depois de uma visita aos Estados Unidos, Hirohito e sua mulher deram uma entrevista coletiva à imprensa no palácio. Nakamura, que participou como representante do London Times, foi um dos poucos repórteres convocados para fazer uma pergunta que estava fora do roteiro.
"Na Casa Branca, vossa majestade se referiu à 'guerra mais infeliz, que eu lamento profundamente'", ele começou. "Podemos interpretar isso como o senhor dizendo que se sente responsável pela guerra, incluindo o fato de que o Japão foi o responsável por iniciá-la? Além disso, posso pedir para que o senhor compartilhe seus pensamentos sobre a chamada responsabilidade sobre a guerra?"
Em certo sentido, a pergunta foi inútil. Hirohito não respondeu nada significativo: "como não mergulhei muito nas questões literárias, esses pequenos truques de linguagem estão além de minha capacidade, e não saberia responder uma pergunta como esta."
Mesmo assim este foi um momento sem paralelos na história do Japão pós-guerra. Embora Hirohito tenha vivido mais 14 anos, até onde sei ele não deu mais entrevistas coletivas à imprensa; se o jornalista tivesse ficado quieto, o imperador teria morrido sem que nunca um cidadão japonês tivesse pedido em público que ele assumisse a responsabilidade por seus erros catastróficos. A pergunta de Nakamura pode ter ficado sem resposta, mas ele merece um lugar na história simplesmente por tê-la feito.
Em vez disso, ele foi quase esquecido. O único repórter que comentou o desafio de Nakamura a Hirohito foi David Tharp, o único participante que não era japonês naquela coletiva de 1975. Em um artigo publicado na manhã seguinte no jornal em língua inglesa Mainichi Daily News, ele disse que Nakamura havia "deixado de lado" o "maior tabu dos círculos jornalísticos japoneses". Ele descreveu a reação de seus colegas japoneses: "foi a única pergunta que pareceu congelar os repórteres com um interesse coletivo. As canetas ficaram paradas sobre os bloquinhos como se não soubessem como se mover por um breve instante." Ele acrescentou, "então houve uma espécie de relaxamento mútuo porque a pergunta que todos estavam secretamente ansiosos para ouvir finalmente havia sido feita."
Passei o último mês tentando buscar informações sobre Nakamura. Não consegui contatar David Tharp, e um e-mail que enviei para o escritório do jornal em Tóquio ficou sem resposta. Mas consegui me encontrar com antigos colegas e conhecidos, e juntar alguns fatos sobre a primeira metade da vida incomum deste jornalista.
Nakamura nasceu em 1918. Quando tinha 13 anos conseguiu um emprego como faz-tudo no escritório do jornal Mainichi, em Kobe. Em seu tempo livre, ele fazia aulas de inglês na escola de línguas estrangeiras da YMCA e no Instituto Palmore. Em 1942, o Mainichi o enviou para Manila para trabalhar em um novo jornal local. Ele permaneceu após a derrota do Japão na 2ª Guerra Mundial, trabalhando como intérprete para os soldados acusados de crimes de guerra; muitos dos quais não falavam inglês.
Ele escreveu sobre esta experiência depois de voltar ao Japão, em 1949. Desses textos parece que, além de servir como intérprete nos julgamentos, ele também traduziu cartas que soldados escreviam "em uma prisão especial com uma forca" imediatamente antes de serem enforcados. Sua tarefa era escrever os desejos finais ditados pelos presos.
Ele estava bastante ciente da brutalidade da matança de Manila em fevereiro de 1945, no qual soldados japoneses massacraram cerca de 100 mil civis. O maior horror daquele acontecimento, escreveu ele, vinha do fato de que o militarismo do Japão, ligado a um culto ao imperador como um deus vivo, era destituído de qualquer respeito ao "valor ou à santidade da vida humana."
Consegui montar uma linha do tempo das reportagens que Nakamura fez como correspondente especial até morrer de câncer no estômago em 1982, aos 63 anos. Reuni textos seus suficientes para perceber que a pergunta que fez a Hirohito naquela coletiva à imprensa em 1975 veio de sua consciência, baseada em sua própria experiência, de todo o mal que aquele outro homem havia causado. Sei que nunca conseguirei compilar um registro adequado da vida de Nakamura --certamente nada tão extenso quanto a vida oficial de Hirohito. Mas para mim, o fato de Nakamura ter feito aquela pergunta é uma contribuição tão grande para a história quanto aqueles 61 volumes, que parecem tão determinados, como o próprio Hirohito, a não respondê-la.
(Norihiro Kato é crítico literário e professor emérito da Universidade Waseda. Este artigo foi traduzido do japonês por Michael Emmerich.)
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