terça-feira, 4 de novembro de 2014

Bilhetes mostram cotidiano medieval russo


Bilhetes mostram cotidiano medieval russo

Por DAVID M. HERSZENHORN

VELIKY NOVGOROD, Rússia - O bilhete era o tipo de lista rotineira de compras. Na Rússia do século 14, foi gravada na casca de uma bétula e enrolada para formar um rolo.
"Mande-me uma camisa, uma toalha, calças, rédeas e, para minha irmã, mande tecido", escreveu um pai chamado Onus a seu filho, Danilo. As letras de forma do idioma antigo novgorodiano, precursor do russo, foram gravadas na madeira. Onus concluiu a carta com um toque de humor. "Se eu estiver vivo, pagarei pelas coisas", escreveu.
Esse e uma dúzia de outros rolos de casca de bétula estão entre as descobertas da temporada de escavações arqueológicas deste ano, somando-se a mais de mil documentos descobertos em Veliky Novgorod depois de passarem centenas de anos soterrados na lama. "Novgorod está para a Rússia como Pompeia está para a Itália", disse Pyotr G. Gaidukov, do Instituto de Arqueologia da Academia Russa de Ciências. "Só que Novgorod continua viva."
Escritos em linguagem coloquial, os documentos de casca de bétula formam uma espécie de trilha sonora humana aos outros artefatos encontrados na região. Há registros de transações comerciais, inventários de bens, cartas trocadas entre familiares e até cartas de amor.
"Case-se comigo", escreveu um homem chamado Mikita a uma mulher chamada Anna, numa carta escrita em casca de bétula entre 1280 e 1330. "Eu quero você e você me quer."
Arqueólogos dizem que, depois de decifrados por linguistas, os documentos infundem vida a todas suas outras descobertas.
"Para nós, eles abrem um caminho, uma janela sobre o cotidiano e as relações das pessoas", comentou Sergei Yazikov, que comandou uma escavação na rua Bolshaya Moskovskaya.
Situada numa curva do rio Volkhov, Veliky Novgorod teria sido fundada pelo chefe varegue Rurik em 859. Foi um lugar onde a democracia reinou, onde príncipes benévolos governaram com o consentimento de um Parlamento formado pelas elites, onde feiras e o comércio internacional fervilhavam de atividade e onde as mulheres participavam dos negócios e de outros aspectos da vida pública.
Entre os mais comoventes dos documentos inscritos nos rolos de casca de bétula estão os escritos de um menino chamado Onfim, que se acredita que tivesse 6 ou 7 ano. Datados de cerca de 1260, incluem exercícios feitos para a escola e rabiscos. Em um destes, Onfim se imagina um guerreiro, escrevendo seu nome ao lado de uma figura a cavalo.
Escavações arqueológicas pontilham a cidade e seus arredores. Os primeiros rolos de casca de bétula foram encontrados em 1951. Especialistas dizem que o solo argiloso úmido que existe por baixo de Novgorod e contém pouco ou nenhum oxigênio possui a qualidade química incomum de preservar tanto artefatos duros, feitos de metal, quanto objetos feitos de materiais mais macios, como o couro.
Na escavação enorme da rua Bolshaya Moskovskaya, Yazikov desceu uma rampa, mergulhando em centenas de anos de história russa.
Pedaços de papel marcavam as camadas correspondentes aos diferentes séculos. Na Rússia, Novgorod é o lugar onde estudantes de arqueologia buscam fazer seus aprendizados e profissionais procuram fazer carreira.
Jos Schaeken, diretor do Leiden University College em Haia e professor de línguas eslavas e bálticas, disse que Novgorod não recebeu do Ocidente a atenção que merece. Disse que ela é "revolucionária, na medida em que possibilita conhecer intimamente uma cidade medieval que tinha laços internacionais com o Oriente e o Ocidente, vendo seu funcionamento, organização e como as pessoas se comunicavam".


Reprodução de reportagem do The New York Times, na Folha de São Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário