É a ÉPOCA do ano em que se espera que muitos adolescentes saibam e digam, enfim, o que querem fazer (e ser) na vida. A nossa cultura acredita que exista uma receita para a felicidade e para o sucesso: a coincidência do nosso desejo com a profissão à qual nos dedicamos.
Se conseguirmos conhecer nosso desejo, escolheremos uma profissão cujo exercício será uma gratificação permanente. Já pensou? Teremos a obrigação de fazer o que a gente quer. Não é maravilhoso?
Pois é, não funciona assim: 1) seguir o desejo da gente não é garantia de felicidade alguma, 2) para a grande maioria, o desejo não está escrito e escondido em algum recanto da mente: ele é incerto.
Rebecca (extraordinária Juliette Binoche), a protagonista do filme "Mil Vezes Boa Noite", de Erik Poppe, é fotógrafa de guerra, umas das melhores. O marido e as filhas não aguentam mais os riscos que ela corre. Ela promete deixar a profissão, mas não é fácil"¦ (Tente ver o filme antes que saia de cartaz.)
Todos temos desejos, pequenos e grandes. Por exemplo, quero escrever um livro sobre minha infância e estou muito a fim de "duroni", que são as cerejas do junho europeu, vermelhas e crocantes. Mas, além desses desejos plurais, que todos têm, alguns (poucos) parecem ter um desejo dominante, que os orienta na vida: eles sabem para o quê apareceram neste mundo.
Rebecca quer fotografar zonas de guerra. Ela mesma pode discordar de seu próprio desejo (e preferir cuidar das filhas e do marido), mas essa é sua razão de ser, é o que confere alguma significação a sua vida.
Mesmo os desejos dominantes, quando eles existem, não são destinos escritos nas páginas do livro dos livros. Como todos os desejos, eles se constituem aos poucos, desde a infância, à força de fantasias, pensamentos, identificações com os sonhos, as frustrações dos adultos etc.
Rebecca explica que ela se tornou fotógrafa de guerra na esperança de fazer as pessoas se engasgarem no café ao abrir o jornal da manhã e descobrir o horror.
Claro, essa é a ponta do iceberg, é o que Rebecca pode explicar à filha: de fato, qualquer desejo resulta de um tortuoso processo de acidentes, encontros, experiências. E, como disse, nem todos os processos acabam com a definição de um desejo dominante –longe disso.
Detalhes: 1) ter um desejo dominante não garante nem o talento nem o sucesso (ainda menos a felicidade), 2) o desejo dominante pode pedir um custo alto e, mesmo pagando o preço, o resultado, além de triste, pode ser medíocre. Rebecca explica por que ela é fotógrafa de guerra, mas seu desejo não explica nem implica o "olhar" que a torna boa fotógrafa. Ou seja, alguém pode fracassar no seu desejo dominante.
Idealizamos as pessoas que parecem ter um desejo dominante porque, por esse desejo, suas vidas têm uma orientação, um sentido. Não as idealizamos porque imaginamos seu sucesso ou sua felicidade.
De fato, ter um desejo dominante é quase uma praga, que limita a liberdade (pergunte a Rebecca se é fácil deixar seu ofício) e exige uma espécie de fidelidade, pela qual alguém incapaz de seguir seu desejo dominante seria um traidor de si mesmo.
Frequentemente, há pessoas que entram numa análise para saber qual é seu desejo e, eventualmente, agir para segui-lo: quem não encontra um desejo dominante pelo qual se definir, em geral, suspeita que seja porque não soube reconhecê-lo.
Ora, na grande maioria das vidas, o desejo se constitui por circunstâncias incertas, oportunidades inesperadas, modelos e referências contraditórios. Essa incerteza é provavelmente mais interessante do que o rigor de um desejo dominante, mas ela nos ameaça com o espantalho de passarmos a vida sem conseguir encontrar a "nós mesmos".
Em suma, o desejo dominante é um engodo. Para os jovens, que sentem o dever de "encontrar seu desejo". E para os pais que, ao mesmo tempo, esperam que os filhos desejem clara e ardentemente, mas, quando isso acontece, amarelam diante do destino que um desejo dominante pode reservar aos filhos.
Não seria melhor se eles fossem capazes de mais compromissos? Sei lá, fotografar casamentos e batizados, em vez de guerras?
p.s. Um outro filme sobre a força do desejo dominante me comoveu: "Saint Laurent", de Bertrand Bonello –só para confirmar que, para quem tem um desejo dominante, segui-lo é irresistível, cansativo e, às vezes, doloroso.
Texto de Contardo Calligaris na Folha de São Paulo.
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