Sou a favor da descriminalização do aborto. Assino listas, divulgo campanhas em redes sociais e só não vou a passeatas porque tenho prolapso da válvula mitral (você também tem, segundo meu cardiologista). Sou a favor por três motivos: liberdade em relação ao corpo, liberdade em relação ao futuro e necessidade emergencial de diminuir o número de mortes por aborto clandestino.
Mas, enquanto escrevo estas linhas profundamente honestas, algo dentro da minha cabeça (minha analista diria: "não chame de algo', assuma que é você") apita como uma chaleira de desenho animado (ou um trem de desenho animado, sei lá) e diz: "então por que você ficou três meses sem olhar na cara da Joana?"
Precisamos falar sobre aborto. Mas, se falar sobre aborto dói, precisamos também falar sobre essa dor. Quando minha amiga interrompeu sua gravidez, eu tive raiva. Ela tinha, na época, 35 anos, dinheiro pra pagar do berçário à faculdade para uns 20 humanos e um namorado gente finíssima. A bomba final: Joana adora crianças.
Então, por quê? E a resposta dela era: vou fazer um curso de fotografia em Nova Iorque e AGORA não tô a fim. Eu apoio Joana. Eu respeito, eu assino embaixo. Eu quero um mundo em que a adolescente pobre tenha esse direito (e os motivos são óbvios até pra sua avó), mas que mulheres como a Joana também tenham (e os motivos são óbvios, sobretudo, pra Joana, e é isso o que importa).
Apesar disso, o bode foi tão grande que em seu aniversário mandei apenas uma carinha feliz. Não consegui sequer digitar "oi". Não consegui ligar, mandar um e-mail. A carinha feliz, por dentro, chorava: como é que uma mulher com essa idade, que gosta de criança, que ama o marido, que tem condições, como? Fui extremamente egoísta ao pensar que minha amiga estava sendo egoísta.
Não é uma questão de ser "reaça" (leitores malas adoram esse termo! É preciso coragem pra admitir que somos bem mais complexos que nossa máscara cool). Eu quero que os gays casem. Eu sou a favor da ciclofaixa. Eu sou a favor da tatuagem de índia no muque bombado (credo), do piercing de mamilo (aff), do cabelo laranja (ui), da liberação da maconha, do tênis com terno, de morar junto sem casar e (pra quem mente que aguenta) do relacionamento aberto. Eu quero gays sem camisa andando de bicicleta na Paulista enquanto fumam maconha. Eu curto as peladonas de Porto Alegre e os meninos de saia. Eu tenho pena das pessoas nas passeatas pela volta da ditadura: onde elas estavam que não leram e não viram e não entenderam?
Eu quero um mundo em que a Joana possa fazer um aborto apenas porque está a fim. Mesmo que durante semanas eu tenha sentido vontade de deletá-la do meu Facebook e de bloqueá-la do grupo "sóasmina" do meu WhatsApp. É preciso mais do que sair com um cartaz na rua. É preciso sair com um cartaz na rua e admitir que dói ao mesmo tempo.
É preciso ser a favor, mesmo que uma porcentagenzinha, lá no fundo do nosso coração, pergunte, em alguns casos: "por quê?" É preciso amar e respeitar a Joana, mesmo que um tantinho do nosso peito esteja contorcido de angústia: eu querendo tanto e ela vai lá e tira? É uma fraqueza e estou assumindo publicamente. Não me apedrejem, por favor. Falar sobre aborto é mais do que ser contra ou a favor.
Eu não consegui sentir nada por Joana a não ser uma interrogação gélida. Eu torcia, envergonhada pela minha ignorância e preconceito, que ela mudasse de ideia. Fiquei um bom tempo gostando menos dela por isso. E, até hoje, gostando menos de mim, por ter gostado menos dela por isso.
Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo.
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