As palestras davam aos policiais algumas dicas úteis para confiscar bens de suspeitos de crimes. Não se deem ao trabalho de confiscar joias (muito difíceis de serem vendidas) e computadores ("todo mundo já tem"), aconselham os especialistas. Busquem TVs de tela plana, dinheiro e carros. Especialmente carros bons.
Em uma palestra gravada em vídeo em setembro, Harry S. Connelly Jr., promotor de Las Cruces, Novo México (Estados Unidos), chamou esses itens de "presentinhos". E então Connelly contou como os policiais de sua jurisdição mal podiam esperar para confiscar o "veículo exótico" de um homem do lado de fora de um bar local.
"O cara dirige uma Mercedes 2008, novinha", ele explicou. "É tão bonita, quer dizer, os policiais à paisana estavam simplesmente suspirando. O cara desceu cheirando a álcool. E foi como, 'ah, meu deus, mal podemos esperar'."
Connelly estava falando sobre uma prática conhecida como confisco civil de bens, que permite ao governo, sem nem mesmo condenar alguém ou chegar a abrir um processo criminal, confisque bens supostamente ligados à atividade criminosa. A prática, que aumentou durante a guerra às drogas nos anos 80, tornou-se importante na polícia porque ajuda a financiar seu trabalho.
É difícil dizer o quanto foi confiscado pela polícia estadual e local, mas dentro de um programa do Departamento de Justiça dos EUA, o valor dos bens confiscados explodiu de US$ 407 milhões em 2001 para US$ 4,3 bilhões no ano fiscal de 2012. A maior parte deste dinheiro é compartilhada com as forças de polícia locais.
A prática de confisco civil foi criticada nos últimos meses, em meio a uma enxurrada de reportagens negativas e uma indignação crescente por parte de defensores dos direitos civis, libertários e por membros do Congresso que levantaram questões sérias sobre a probidade da prática, que segundo os críticos desconsidera o direito ao processo. Em um caso citado com frequência, um casal da Filadélfia teve a casa confiscada depois que o filho vendeu US$ 40 em drogas na varanda.
Apesar da oposição, muitas cidades e estados estão tomando medidas para aumentar os confiscos civis de carros e outros bens. As palestras, algumas das quais foram gravadas em vídeo, evidenciam como os policiais veem a prática.
De Orange County, Nova York, a Rio Rancho, Novo México, operações de confisco estão sendo implementadas ou expandidas. Em setembro, Albuquerque, que há muito confisca os carros de motoristas suspeitos de dirigir embriagados, começou a confiscar os carros de homens suspeitos de tentar pegar prostitutas, recolhendo vários carros durante uma batida de uma noite.
O Arkansas expandiu sua lei de confisco para permitir que a polícia apreenda dinheiro e bens suspeitos de ligações com o terrorismo, e Illinois tornou os barcos passíveis de confisco de acordo em suas leis contra direção alcoolizada, além de apreender carros. Em Mercer County, Nova Jersey, um promotor prega o "evangelho" de que o confisco não serve apenas nas prisões relacionadas a drogas - carros também podem ser confiscados em casos de furto e estupro de menores.
"No nível local - cidades, condados - eles continuam interessados, talvez cada vez mais, em complementar seus orçamentos fazendo o tipo de confisco que vimos na Filadélfia e em outros lugares", diz Lee McGrath, advogado do Instituto pela Justiça, uma empresa de interesse público que montou uma ofensiva legal e de relações públicas contra o confisco civil.
A maior parte dos aspectos práticos do confisco civil é passada em seminários de capacitação contínua para promotores e policiais locais, que às vezes são gravados em vídeo. O Instituto pela Justiça, que levou os vídeos à atenção do The Times, diz que eles mostram como a prática se tornou cínica e como a motivação pelo lucro pode superar os motivos de segurança.
Nas palestras, funcionários da lei compartilham dicas para maximizar os lucros, contestando as objeções dos chamados "donos inocentes" que não estavam presentes quando o suposto crime ocorreu, e mantendo os bens nas mãos da polícia e longe dos orçamentos gerais. O Times avaliou três palestras, uma em Santa Fé, Novo México, que aconteceram em setembro, uma em Nova Jersey que não tinha data, e uma na Geórgia em setembro que não foi gravada em vídeo.
Funcionários oferecem conselhos sobre como lidar com juízes céticos, zombam de hispânicos que tiveram os carros confiscados, e fazem comentários que, segundo o Instituto pela Justiça, dão peso ao argumento de que o confisco civil encoraja decisões baseadas no valor dos bens confiscados em vez de na segurança pública.
Na sessão da Geórgia, o promotor que deu a palestra se orgulhou de ter ajudado a impedir uma reforma no confisco civil na Geórgia, liderada pelos republicanos, onde o dinheiro confiscado tem sido usado pelas autoridades, de acordo com reportagens, para pagar ingressos de jogos, festas de escritório, além de um sistema de segurança para uma casa e um carro esportivo de US$ 90 mil.
Em defesa da prática, Gary Bergman, promotor do Prosecuting Attorneys' Council da Georgia, disse que o confisco civil foi distorcido nas reportagens.
"Tudo o que eles falam é que uma mulher foi deixada na beira da estrada e a polícia foi embora com o carro e o dinheiro dela, sem nenhuma conexão com drogas", disse ele a outros promotores na palestra.
"Não estou dizendo que isso não acontece - acontece. Não deveria. Mas nunca se fala do resto das pessoas que são flagradas com drogas nos carros, em suas casas, os laboratórios de drogas que vemos, nem de todas as coisas úteis que fazemos com o dinheiro, o equipamento, os veículos. Ninguém fala nada sobre isso." Em uma entrevista, Connelly disse que a lei de Las Cruces só faz o que a Suprema Corte disse que é permitido.
Sean D. McMurtry, chefe da unidade de confisco da promotoria de Mercer County, Nova Jersey, disse que a apreensão contribui apenas para uma pequena porcentagem dos orçamentos locais, mas é uma pena eficaz e funciona especialmente bem contra criminosos reincidentes, como por exemplo em casos de violência doméstica em que ordens de distância mínima são desrespeitadas. "Temos muito orgulho de nossa operação de confisco", disse ele em uma entrevista.
Mas no vídeo, McMurtry deixou claro que os confiscos são em grande parte consequência das necessidades da polícia. Em Nova Jersey, a polícia e os promotores têm permissão para usar carros, dinheiro e outros bens confiscados; o resto deve ser vendido em leilão. Telefones celulares e joias, diz McMurtry, não compensam. Televisões de tela plana, contudo, "são muito populares nos departamentos de polícia", diz ele.
Nas palestras, os promotores se vangloriam de que os casos de confisco raramente são contestados. Mas o confisco civil coloca o ônus sobre os proprietários, que devem pagar despesas de tribunal e custos legais para reaver seus bens. Muitos confiscos não são contestados porque o bem não compensa os gastos.
E com frequência a primeira audiência não é presidida por um juiz, mas sim pelo promotor cujo departamento se beneficia dos bens e que tem amplos poderes para decidir confiscar ou devolver o bem, às vezes em troca de uma multa cara. McMurtry diz que a foma como ele lida com um caso às vezes é determinada pela lista de desejos do departamento.
"Se vocês quiserem um carro, e se quiserem muito adicioná-lo à sua frota, é só me avisar - vou lutar por isso", disse McMurtry, falando aos policiais no vídeo. "Quando você me diz isso, vou tentar resolver bem rápido através de um acordo e conseguir dinheiro pelo carro, conseguir que o guincho seja pago, conseguir algum dinheiro por ele."
Uma crítica ao confisco civil é que ele resulta em penalidades muito diferentes - um motorista bêbado pode perder um carro de luxo de US$ 100 mil, enquanto outro tem uma lata velha de US$ 2 mil confiscada. Em entrevista, McMurtry reconheceu que ele costuma usar muito discernimento.
"Num crime primário, se não for nada tão sério, chegamos a uma quantia em dólares, dependendo do valor do carro e da gravidade da infração", diz ele. "Tento chegar a uma quantia em dólares que não seja tão alta a ponto de as pessoas não poderem pagar, e nem tão baixa que não tenha nenhum impacto. Se for uma segunda infração, eles não recebem o bem de volta."
Os promotores estimam que entre 50% a 80% dos carros confiscados eram dirigidos por alguém que não era o dono, o que às vezes significa que um pai ou avô perde o carro. No vídeo de Santa Fé, um policial reconheceu que a lei pode afetar as famílias, mas se mostrou cético quanto aos donos que dizem que não sabiam que o parente estava infringindo a lei.
"Não sei dizer quantas pessoas chegam aqui e dizem 'ah, meu hijito [filhinho] nunca faria isso'", disse ele, imitando uma voz feminina com um sotaque espanhol.
"Não sei dizer quantas pessoas chegam aqui e dizem 'ah, meu hijito [filhinho] nunca faria isso'", disse ele, imitando uma voz feminina com um sotaque espanhol.
Reportagem de Shaila Dewan, para o The New York Times, reproduzido no UOL. Tradutor: Eloise de Vylder
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