Embora muitas pessoas em Bangladesh neguem, praticamos nossa própria forma de escravidão.
Nos últimos meses, mais de 170 homens, na maioria bengaleses, foram resgatados das mãos de traficantes humanos nas florestas da Tailândia. Alguns dos homens relataram que haviam recebido ofertas de trabalho, mas quando apareceram, foram drogados, amarrados e arrastados para barcos onde apanharam e passaram fome. A notícia causou indignação entre os bengaleses, muitos dos quais culparam o governo do país por não proteger seus cidadãos. Outros expressaram espanto ao descobrir que este tipo de escravidão dos tempos modernos ainda existe.
O fato de que esses homens foram tão facilmente atraídos para o trabalho cativo no exterior é prova da falta de esperança de suas vidas em seu país. Embora alguns dos homens digam que não sabiam que seriam enviados à Tailândia, a maioria deles estava pronta para embarcar no desconhecido. Eles estavam desesperados por trabalho.
Eu cresci em Bangladesh, onde, em cada casa de classe média, havia pelo menos uma kajer meye residente – uma empregada ou "menina serviçal" – normalmente com um ou dois filhos pequenos servindo à família. Ela trabalha desde a manhã até a noite, às vezes por bem pouco dinheiro, outras apenas por restos de comida e acomodações básicas.
Em nossa casa ela se chamava "Rahela's Ma", mãe de Rahela. Meus irmãos e eu crescemos com ela, e todos os dias a víamos cozinhar, buscar água, pentear nossos cabelos antes de ir para a escola, lavar nossas roupas no quintal. Nunca pensamos que era estranho que ela não tivesse um nome próprio. Víamos Rahela, também, uma criança de nariz escorrendo, sentada no chão da cozinha em roupas usadas grandes demais dadas por nossa família. Ela estava sempre chorando, uma vez que sua mãe vivia ocupada moendo cúrcuma e pimenta, coentro e cominho, e arrumando-os na galheteira que mais parecia uma palheta de artista.
Anos mais tarde, quando voltei para visitá-los, disseram-me que a mãe de Rahela havia morrido. Agora era Rahela que moía as especiarias, seus braços mal alcançavam o pilão. Ela tinha dez anos.
Há milhões de crianças trabalhando em Bangladesh; 400 mil entre 6 e 17 anos são empregados domésticos. Embora tenha havido muitos pedidos para proteger os direitos dessas crianças, a maioria delas continua, como diz Nishat Mirza da Save the Children, Bangladesh, "dentro do quarto, fora da lei".
A relação de Rahela com meus pais pode ser definida como sendo trabalho não livre. Embora minha mãe, assim como dezenas de milhares de sul-asiáticos, negue veementemente, é uma forma de escravidão.
No ano passado, o Índice Global de Escravidão colocou Bangladesh em 10º lugar na lista de países com o maior número de pessoas escravizadas; a Índia ficou em primeiro e o Paquistão em terceiro. A face moderna da escravidão pode se expressar de muitas formas: nas vidas dos trabalhadores domésticos, no trabalho cativo e forçado nas áreas rurais e urbanas, no trabalho mal remunerado nas fábricas, contínuos de escritórios, vendedores de flores nos semáforos, meninos que vendem chá em restaurantes e trabalhadores sexuais.
Nas confecções de Bangladesh, os trabalhadores podem não ter sido sequestrados ou vendidos, mas considerando as circunstâncias insalubres sob as quais trabalham, as jornadas longas e salários mensais de até US$ 50, é difícil saber como definir esta forma de "emprego". Em abril de 2013, depois que mais de mil pessoas morreram nos escombros da fábrica no prédio Rana Plaza nos subúrbios de Dhaka, o papa denunciou as condições sob as quais eles trabalhavam como "trabalho escravo".
Defensores dos direitos humanos há muito lutam para melhorar as condições de trabalho, mas algumas tentativas foram um tiro pela culatra. Em 1993, quando o Congresso propôs a Lei de Proibição ao Trabalho Infantil, que teria tornado ilegal a importação de bens produzidos por trabalho infantil, dezenas de milhares de trabalhadores menores de 18 anos nas confecções de Bangladesh foram demitidos preventivamente.
Kabir Akon, um defensor dos direitos da criança que trabalha para o Bangladesh Legal Aid and Services Trust, diz que a complexidade de classes e castas é uma das principais razões pelas quais é tão difícil melhorar as condições de trabalho. A cultura da dependência, e a velha crença no destino ou karma, de que Deus nos fez assim, de que alguns são borolok e outros chhotolok – literalmente, pessoas pequenas e grandes – perpetua profundas divisões sociais.
Na maioria das casas de Bangladesh, empregados domésticos que trabalham por praticamente nada raramente reclamam; na prática, há uma ideia de gratidão e veneração em relação ao empregador. E muitos desses "empregadores" argumentam que estão criando empregos para pessoas que de outra forma seriam traficadas para o Oriente Médio ou o Sudeste Asiático, como aqueles homens na Tailândia.
Todos nós conhecemos histórias de horror sobre empregadas domésticas na Arábia Saudita, escaldadas com água fervente, e homens com as costas marcadas por ter apanhado. Certamente eles estariam melhor conosco, dizem a si mesmos esses empregadores de Bangladesh.
Devemos nos indignar com o que aconteceu a esses bengaleses na floresta tailandesa. Mas também devemos nos envergonhar pela terrível falta de dignidade que enfrentam em sua própria terra, que obriga muitos deles a uma vida de servidão no exterior.
Devemos nos indignar com o que aconteceu a esses bengaleses na floresta tailandesa. Mas também devemos nos envergonhar pela terrível falta de dignidade que enfrentam em sua própria terra, que obriga muitos deles a uma vida de servidão no exterior.
Texto de Lipika Pelham para o The New York Times, reproduzido no UOL. Tradutor: Eloise De Vylder.
*Lipika Pelham é cineasta e autora do livro de memórias "The Unlikely Settler"
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