Durante a filmagem de "Tarzan e o Menino da Selva", a intimidade com que Chita encarava os atores assombrou José Lewgoy. É que para ela, explicou o treinador, não há diferença entre um chimpanzé e o resto do casting.
O episódio corrobora com a perspectiva ameríndia de Eduardo Viveiros de Castro. Nela, o sentido de humanidade não pertence ao homem, mas aos seres vivos.
O Ocidente, segundo o antropólogo, segue a trindade de Cristo, Kant e Descartes, para quem o homem corria dois grandes perigos: negar a existência de Deus e acreditar que todo animal tem alma.
A razão diferenciava os humanos dos animais. Mas para um índio, pelo contrário, o traço de união entre as espécies é justamente a humanidade, não a animalidade.
A onça é gente para a onça, que vê o homem como porco. O porco é gente para o porco, que vê o homem como onça. A natureza muda conforme o ponto de vista e todos, sem distinção, são sujeitos da própria necessidade.
Mas a onça, o homem e o porco não podem se ver como gente ao mesmo tempo. Alguém tem que servir de pasto. O índio, esclarece o pesquisador, tem enorme respeito pela alteridade e nenhum pela autoridade.
Tidas como primitivas, coube às nações indígenas formular um raciocínio bem mais complexo do que a visão autocentrada que os civilizados têm de si mesmos.
Viveiros defende que a antropologia, hoje, exerce um papel tão importante quanto o da física para o Renascimento. Dessa vez, em lugar da Terra, é o homem que deve ser tirado do centro do universo.
Para um nativo, o maior inimigo dos vivos são os mortos. É contra aqueles que não têm corpo, e que, portanto, não são diferentes de nós, que devemos lutar. Entidades abdutoras, os mortos costumam atacar os que se veem a sós, na floresta, longe de seus companheiros.
Se um espírito invejoso --na forma de mãe, pai, animal ou planta-- te dirigir a palavra, advertem os sábios, não responda. Grite que é gente e o fantasma desaparecerá. Caso contrário, você reconhecerá nele a condição de sujeito, perderá a sua e estará condenado à captura e à morte.
Viveiros, que não é dado a contatos com o além, associa essa sensação de desproteção diante do sobrenatural ao medo que sente quando é interpelado pela polícia. Todos são iguais perante o Estado, observa, não há parentesco que te dê garantias, em especial, se você é preto e pobre.
O Estado é a sobrenatureza.
A correlação ajuda a explicar a sua aversão às ambições governistas de direita e de esquerda. Os plano de desenvolvimento dos militares para a Amazônia, diz ele, não diferem do genocídio perpetuado pelo governo democrático de hoje.
Há um desrespeito generalizado pelos que não se encaixam na cadeia produtiva; a engrenagem que resultou numa sociedade escravizada pelo trabalho, produtora de lixo, em vias de exaurir os recursos naturais do planeta.
Ruralistas e trabalhistas, capitalistas e comunistas, do Executivo e do Legislativo, defendem o crescimento e a geração de empregos. Não há como parar as máquinas. O bonde do progresso só funciona andando.
Em São Paulo, 2 milhões de pessoas se aboletam nas nascentes dos rios, outros tantos ganham a vida na indústria automobilística, bilhões de chineses comem soja do Mato Grosso e o pré-sal financiará a saúde e a educação.
Com a derrota de Marina Silva, a ecologia sumiu da pauta nessas eleições, enquanto as queimadas batem recordes.
Na mesma semana em que definimos o pleito, o biogeoquímico Antonio Nobre, do Inpe, divulgou o resultado dos estudos sobre a bomba d'água amazônica. O desmatamento no Norte e no Centro-Oeste estaria interrompendo o fluxo dos rios de vento, responsáveis pelas chuvas no Sudeste.
É preciso barrar as motosserras e promover o replantio imediato, ou a vingança de Tupã transformará o sul maravilha em sertão.
Pior que mortos, somos mortos-vivos movidos a diesel. Sem termos como voltar a ser índios e nem como continuar brancos, esperamos que a providência divina promova milagres na Cantareira.
Enquanto escrevo, admiro pela janela a maior floresta urbana do mundo, resultado do decreto de Dom Pedro 2º, firmado em 1861, que ordenou o replantio do maciço da Tijuca, devastado pelas monoculturas de cana e café.
Manda ressuscitar o monarca!
Texto de Fernanda Torres, publicado na Folha de São Paulo.
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