Política de Putin assume tom religioso
Por NEIL MacFARQUHAR
SERGIYEV POSAD, Rússia - Milhares de peregrinos participaram da procissão até o mosteiro fazendo orações, cantando e demonstrando o tipo de fervor nacionalista que o presidente Vladimir Putin busca capitalizar para si mesmo.
A razão oficial da procissão em julho até a Lavra da Trindade-São Sérgio, sede da fé ortodoxa russa e o primeiro mosteiro do país, era comemorar o 700° aniversário desse santo que foi seu fundador.
Mas a maré de cerca de 30 mil peregrinos também denotou o esforço de Putin para se promover como defensor de valores tradicionais em uma campanha que vem se intensificando desde o envolvimento da Rússia com a Ucrânia.
As comemorações na cidade de Sergiyev Posad, que é o centro espiritual da Rússia e fica a cerca de 70 quilômetros ao norte de Moscou, enfatizaram o papel de são Sérgio na construção de uma Rússia unificada, uma narrativa que se encaixa no nacionalismo e na moral conservadora adotados por Putin.
Todavia, alguns historiadores e luminares da igreja criticam esses esforços do Kremlin para utilizar o legado do santo para fins políticos, fomentando o que um crítico chamou de "culto oficial" para a Rússia.
"Eles estão criando um mito em torno de são Sérgio, o qual passa a impressão de que ele foi um servo obediente do Estado russo, mas isso é falso", disse a historiadora Irina Karatsuba. "Ele é um dos exemplos mais importantes do que era e é o melhor da Rússia."
Para analistas, a peregrinação ilustra como Putin está tentando usar a ortodoxia russa como um elo de união entre os russos, a fim de criar uma nova ideologia para sua trajetória no poder após 14 anos como presidente ou primeiro-ministro.
A Igreja Ortodoxa Russa foi ressuscitada após o colapso da União Soviética em 1991, que pôs fim a 70 anos de repressão comunista brutal. A igreja parece bem satisfeita em atrelar seu débil ressurgimento aos êxitos de Putin, a fim de atrair mais fiéis.
Embora 8% dos 140 milhões de russos se identifiquem culturalmente como ortodoxos russos, o número real de frequentadores da igreja é ínfimo -segundo especialistas, gira em torno de 3%.
A origem da fé ortodoxa russa remonta a Vladimir, o Grande, grão-príncipe de Kiev, que promoveu batismos em massa naquela cidade em 988, introduzindo o cristianismo no que se tornou a Sagrada Rus.
Agora, porém, que a Rússia e a Ucrânia estão em conflito, o governo e a igreja percebem que o elo físico com um símbolo religioso importante está sendo rompido, observou Geraldine Fagan, autora de "Believing in Russia - Religious Policy After Communism" (fé na Rússia - política religiosa após o comunismo).
Como essas raízes e as relíquias do próprio são Vladimir estão no território de um vizinho belicoso, a Rússia parece estar lançando mão de são Sérgio para substituir o outro santo, opinou Fagan.
No final do século 14, são Sérgio de Radonezh persuadiu os príncipes russos a deixarem de brigar entre si e a se concentrarem em pôr fim ao jugo mongol.
"São Sérgio deu início não só ao monasticismo russo ou à tradição espiritual russa", disse Vladimir Legoyda, do Sínodo Sagrado. "Em vários aspectos, ele é a fonte da própria Rússia."
O santo não quis liderar a igreja, porém recebeu o título de abade superior de toda a Rússia.
"Ele é uma grande personalidade na história russa", disse Margarita Popova, professora de inglês de 48 anos que partiu de sua casa perto de Volgogrado e viajou 17 horas de ônibus com seu filho adolescente para o aniversário do santo. "A Rússia antes e depois de Sergei Radonezh são duas coisas diferentes."
Na época dos czares, segundo Vladimir Bubelev, oficial da reserva da Marinha, a Rússia evocava nobreza e moralidade. Os Romanov reverenciavam são Sérgio profundamente. "Eles ajudaram os czares a governar a Rússia da maneira certa e, com isso, a nação enriqueceu", disse Bubelev. Os czares "iam até suas relíquias para pedir ajuda divina e a obtinham. Graças a Deus, Putin agora está pedindo ajuda aos santos".
Putin, que compareceu à comemoração do aniversário menos de 24 horas depois da queda de um avião civil na Ucrânia que muitos atribuíram a Moscou, dirigiu-se aos fiéis por apenas cinco minutos. Ele louvou o "ressurgimento patriótico, nacional e moral" inspirado no monge.
"Suas palavras sábias e bem fundamentadas como mentor e guia foram um pilar espiritual e um apoio durante uma época difícil de invasão estrangeira e discórdia interna", disse Putin.
Michael Storojinsky, 53, produtor de músicas religiosas, explicou por que caminhou durante cinco horas sob o sol inclemente do verão: "A fé sem ações concretas é estéril".
"Eu era comunista na época em que o Partido Comunista combatia superstições religiosas", relatou ele. O partido "se colocava no pedestal que cabia a Deus".
Colaboração de Sophia Kishkovsky
Reprodução de reportagem do The New York Times, na Folha de São Paulo.
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