quinta-feira, 28 de agosto de 2014

A arte da fuga


Há mil momentos em que gostaríamos de fugir --da família, dos amigos, do nosso passado, de nós mesmos: em suma, de tudo.
Especialmente na adolescência, a fuga é um jeito saudável de crescer --fugimos para os devaneios, para outra religião, para drogas, para ideias políticas inéditas na nossa família, para promiscuidades sexuais bizarras ou, ainda, fugimos de casa com uma trouxa nas costas.
É preciso fugir para ter a impressão de sermos "nós mesmos", diferentes do que os pais, a escola e os adultos esperavam que fôssemos. Mas a arte da fuga é complicada e comporta alguns riscos.
Está em cartaz "Um Belo Domingo", de Nicole Garcia. O filme não é uma obra-prima, mas é perfeito para pensar na arte da fuga. Além disso, tenho um carinho especial por Nicole Garcia.
Em 1983, eu estava dando a volta à França para promover um livro ("Hipothèse sur le fantasme", Seuil). Era um livro de psicanálise, para adeptos. Nas cidades que eu visitava, conversava com um pequeno público de psicanalistas e estudantes. Em Grenoble, o encontro era num sábado, na casa da cultura.
Quando cheguei, já havia uma fila impressionante esperando para entrar: o papo foi transferido para o grande anfiteatro. O que tinha acontecido? Na época, semanalmente, "Le Nouvel Observateur" convidava uma celebridade a indicar seu evento preferido para cada dia. Naquela semana, Nicole Garcia, atriz (ela ainda não dirigia), tinha indicado, para aquele sábado, o encontro comigo na casa da cultura de Grenoble. Alguns acharam que eu devia estar secretamente namorando Nicole Garcia, e outros que ela devia estar se analisando comigo.
Por que conto essa história agora? Freud explica: aquela viagem a Grenoble por pouco não foi a ocasião para uma grande fuga (que foi postergada: o ano seguinte foi minha primeira viagem ao Brasil). Agora, se Nicole Garcia tivesse estado lá e tivesse me proposto para fugir com ela...
Curiosidade: esbarrei na página responsável pelas mil pessoas que compareceram naquele dia (http://migre.me/ldhZa).
Nicole Garcia sempre se interessou por psicanálise, e "Um Belo Domingo" é quase um filme didático. Sem spoilers: Baptiste fugiu de seu passado, mas um dia, para ajudar uma amiga, ele precisa voltar para a casa e a família das quais ele fugiu.
1) A recusa do passado da gente pode ser uma revolta (sou contra a família que me criou) ou uma mistura de ficção e esquecimento (eles me quiseram ou não me quiseram etc.) --enfim, tudo para dar sentido à nossa presença no mundo.
Há fugas que são apenas distorções da vida que parecia nos ser destinada, e há fugas nas quais a gente se afasta de nossa história a ponto de se perder. Nessas fugas radicais, à força de querermos ser nós mesmos, podemos acabar não sendo mais nada.
Os exemplos, justamente, vão desde o filho de um advogado californiano que acabou sendo talibã no Afeganistão até os que enlouquecem por ter cancelado sua história sem conseguir inventar ou encontrar outra.
2) As recusas radicais produzem uma espécie de errância. Quase sempre, o que nos prende a um lugar é nosso passado --sem ele, por que parar? Inversamente, prender alguém (interná-lo) se apresenta como um jeito de "convencê-lo" a aceitar seu passado.
3) É fácil imaginar que a recusa radical de nosso passado nos leve a uma grande liberdade de vida, de ação e de pensamento. Não é assim: a recusa radical de nosso passado nos leva à procura incessante (angustiada e, às vezes, delirante) de qualquer coisa que organize o mundo ao redor da gente.
4) As fugas radicais são fracassos da arte da fuga. E não sei se há mesmo casos em que uma fuga radical seja inevitável ou desejável. Há poucas histórias que precisem ser apagadas e que não possam ser transformadas.
Fugi de casa aos 14 ou 15 anos; sumi durante um ano. Ninguém me procurou para me internar. O extraordinário, retroativamente, foi o respeito de minha família por minha fuga. De qualquer forma, eu não desprezava o sentido que minha família e meu passado me reservavam. Fugi por pressa de inventar sentidos novos, porque me parecia que o passado não bastava para justificar minha vida.
Em que medida é justo querer que os filhos sejam "nossos" filhos? E em que medida é possível aguentar que eles, um dia, fujam da gente?


Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

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