Escritores chineses como eu muitas vezes precisam fazer escolhas
difíceis. O que devemos fazer quando os amigos são presos sem uma boa
razão? Manter a boca fechada? Devemos protestar, sob risco de sermos
arrastados para a prisão? É justo com nossas famílias e amigos nos
arriscarmos a apodrecer na cadeia porque nos recusamos a calar a boca?
Depois de vários meses longe da China para uma residência acadêmica e de
férias, voltei para minha casa em Pequim, em 2 de julho, preparado para
ser preso. No exterior, eu havia anunciado no blog e neste jornal que
iria me entregar às autoridades por ter contribuído com um ensaio para
uma homenagem privada às vítimas da repressão de 1989 na praça
Tiananmen. Vários dos participantes da manifestação em Pequim haviam
sido presos.
Em 6 de julho, postei uma mensagem on-line dizendo que eu estava em casa
e pronto para ser apanhado. Minha namorada nunca disse isso, mas eu
sabia que ela estava desconfortável com a minha posição. Dois dias
depois, recebi um telefonema de um policial da delegacia do Templo
Wanshou, perto de onde eu vivo, me pedindo para ir "ter uma conversa".
Entrei na delegacia por volta de 17h30 e fui levado ao segundo andar.
Precisei esperar os agentes da guobao, que é parte da força policial
secreta da China. A guobao raramente é mencionada nos noticiários, e
poucas pessoas sabem detalhes do seu orçamento e estrutura. Ela está em
toda parte. Para dissidentes chineses, "guobao" significa pesadelo.
Enquanto esperava, apanhei de uma mesa um exemplar das "Leituras
Selecionadas de Discursos Importantes de Xi Jinping". Um capítulo era
sobre a construção de "uma China governada pela lei". Eu poderia ter
sido encorajado pelas palavras do nosso presidente, se estivesse sentado
em outro lugar.
Após cerca de 40 minutos, dois agentes à paisana da guobao apareceram e
me levaram para uma pequena sala. Marcas de sapatos cobriam as paredes, e
pontas de cigarro estavam espalhadas pelo chão. No meio da sala havia
uma mesa com um computador e uma impressora. Minha cadeira estava em
frente à mesa.
Um dos agentes apresentou sua identificação, e o outro me deu uma
garrafa de água. Aconselharam-me a "responder de forma correta, caso
contrário, haverá consequências legais".
Eles rapidamente se voltaram para a homenagem às vítimas do incidente de
1989 na Tiananmen. Por que você quis participar do evento? Quem
contatou você? Quando? Onde haviam se conhecido? O que essa pessoa
disse? O que você disse? O que você escreveu em seu discurso?
Eu respondi às perguntas deles com sinceridade. Não vi motivo para
esconder nada. Em seguida, discutimos o próprio incidente da praça
Tiananmen. Argumentei que sob nenhuma circunstância o governo deveria
ter ordenado ao Exército que disparasse contra civis desarmados, muito
menos colocar tanques para percorrer as ruas de Pequim.
Os agentes não concordaram nem discordaram de mim; continuaram a fazer
perguntas: você sabe qual era a situação geral? Você sabe o que estava
acontecendo nos assuntos internacionais, no momento? Sabe quantos
soldados foram espancados ou queimados até a morte?
A conversa se voltou para a questão de se eu havia ou não violado a lei.
Disse a eles que partia do princípio de que eles achavam que sim,
porque prenderam meus amigos que estavam na homenagem à Tiananmen. Os
policiais não gostaram de eu ter insinuado que a lei seria caprichosa. A
lei não tem a ver com o que "acham", disse um deles. A polícia, disse o
agente, prendeu meus amigos porque eles violaram a lei.
Em seguida, discutimos se os cidadãos "devem obedecer à lei". Eu disse
que as boas leis devem ser obedecidas, mas que as leis do mal devem ser
desafiadas. Eles discordavam fortemente, insistindo que a lei deve ser
obedecida, seja ela boa ou má.
"E você é bacharel pela Universidade de Ciência Política e Direito da
China, hein?", perguntou o mais jovem. Comecei a falar sobre o ensaio de
Thoreau a respeito da desobediência civil, mas rapidamente me senti
como um pedante ridículo. Qual é o sentido de falar sobre desobediência
civil em uma delegacia de Pequim? Após o interrogatório, os dois
entraram em uma sala adjacente para fazer um telefonema, supostamente
pedindo instruções a superiores. Demorou um pouco.
Essa foi a parte mais difícil da noite: a espera por alguma força
misteriosa que tomasse uma decisão sobre mim. Em algum lugar nesta
cidade alguém estava prestes a decidir o meu destino, e eu não sabia
nada sobre essa pessoa. Os dois oficiais pareciam estar no escuro
também. Eles fizeram um segundo telefonema.
Voltaram, e um deles perguntou: "Se eu prender você hoje, você vai ser
capaz de deixar de exagerar isso quando sair?" Eu lhes disse que não
poderia prometer isso.
Os policiais queriam ir até a minha casa pegar o ensaio que eu tinha
escrito para a homenagem à Tiananmen. Eu disse a eles que havia me
oferecido para vir ao interrogatório, mas não tinha intenção de entregar
os meus direitos, e que eles precisariam de um mandado de busca e
apreensão. Eles finalmente concordaram em me deixar ir para casa sozinho
e pegar o ensaio para eles. Mas, uma vez em casa, eu não conseguia
encontrá-lo: eu o havia escrito em uma mensagem de e-mail, e a minha
conta estava inacessível por causa do Grande Firewall.
Voltei para a delegacia de mãos vazias. Os policiais me deixaram ir
embora depois de eu fazer uma declaração sobre o e-mail inacessível, de
assinar cada página e de colocar uma impressão digital. Eu também tive
de acrescentar uma declaração de que havia lido a transcrição da minha
conversa com os policiais e que se tratava de um registro preciso.
"Agradecemos por você ter se entregado", disse um agente, "mas a lei é a
lei, e embora nós nunca deixemos nenhum meliante fora do laço, nunca
trataremos pessoas boas injustamente. Entende?".
Esta foi a primeira vez que fui interrogado pela polícia. No decurso das
minhas sete horas de interrogatório, os agentes da guobao nunca foram
ferozes. Na verdade, eles foram educados. Com relação a isso, o governo
chinês tem evoluído para parecer amigável, mas no seu âmago ainda é um
regime ditatorial, que nunca vai acomodar alguém como eu, que não
concorda com isso.
Enquanto eu estava sendo interrogado pela polícia, e depois da minha
libertação, muitas pessoas -amigos e desconhecidos- expressaram seu
apoio a mim, on-line. Alguns até prometeram se entregar à polícia
também.
Essa reação diz algo sobre a China de hoje: cada vez mais pessoas já não
têm medo de serem presas por falar o que pensam. Ser interrogado pela
polícia tornou-se uma questão de honra.
Eu ainda vivo com medo. Visitei muitas prisões chinesas por causa de um
romance que escrevi sobre o mundo jurídico. Sei que elas não são lugares
agradáveis. Mas eu tenho um medo maior: viver em uma China onde gente
boa seja presa, onde as pessoas tenham medo de falar o que pensam, e
onde a lei tenha pouco a ver com a justiça.
Texto de Murong Xuecun para o The New York Times, reproduzido na Folha de São Paulo.
Murong Xuecun é romancista e blogueiro, autor de "Deixe-me em Paz" (Geração Editorial).
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