Muito se fala da chamada autoficção, ou da tendência de escritores contemporâneos a usar elementos de aparência autobiográfica em suas obras. A Cosac Naify lançou há pouco dois possíveis e ótimos exemplares da vertente: "Formas de Voltar para Casa", de Alejandro Zambra, romance que se lê como memória, e "O que Amar Quer Dizer", de Mathieu Lindon, memória que se lê como romance.
O debate me interessa menos pelo que tem de estético do que por seus desdobramentos éticos. Ou seja, não importa literariamente o que é fato ou criação. A fronteira é sempre porosa em algum nível. Se conto uma história de 20 anos atrás, ela vira parte de uma narrativa que, ao contrário da vida, aponta para um sentido: acontecimentos serão distorcidos, inclusive no nível mais básico da linguagem, para soarem dramáticos, trágicos ou cômicos.
É parte do jogo, assim como dar de barato que a noção de "realidade" é subjetiva. Pergunte a duas testemunhas sobre a mesma cena, e cada uma apresentará uma versão. Só que é preciso partir de algum ponto para não dar bom dia ao Onan relativista. Se digo "nasci em Porto Alegre e hoje vivo em São Paulo", há dois dados concretos e verificáveis na frase.
Da mesma forma, se tenho um tio médico que sofreu um acidente de barco na Amazônia e escrevo um romance sobre um tio médico que sofreu um acidente de barco na Amazônia e abusa de crianças, crio um juízo que transcende a ficção. Parte do público achará que é tudo verdade. Ou que sou mentiroso e estou difamando o meu tio. Ou que houve uma briga entre nós e o texto é uma vingança.
Quando se diz que literatura não muda o mundo, é interessante pensar no exemplo do parágrafo anterior. A Bovespa, a Cantareira e a Papuda não se abalarão pelo eventual sucesso do tal romance. O mesmo não dá para dizer do meu tio hipotético, da mulher dele, dos filhos, dos amigos, dos pacientes, do administrador do hospital onde ele trabalha.
Sempre que o assunto vida versus obra é discutido, lembro o que Zadie Smith disse sobre T.S. Eliot, um dos defensores da separação total entre as duas esferas: será que o grande poeta e crítico americano não pensava assim, entre outros motivos, porque em sua biografia constava a decisão de abandonar a mulher num hospício?
Como escritor que já se baseou em fatos identificáveis por pessoas vivas --família, amigos de infância--, é inevitável me deparar com a pergunta. Ela nada tem a ver com o direito de cada um publicar o que quiser. Nem com o resultado estético dos livros: este será o que o leitor decidir.
Estou falando do que vem depois. Quando Zambra usa um narrador com a sua idade e sua profissão, evocando uma infância que parece ter sido a sua, num país --o Chile dos anos Pinochet--semelhante ao que conhecemos de relatos históricos, nos induz a uma interpretação que não é exclusivamente literária.
De modo análogo, ao tratar de personagens verdadeiros como Michel Foucault e Hervé Guibert, ambos de uma turma dizimada pela Aids na França dos anos 1980/1990, Lindon acena com a autoridade de quem estava presente nos acontecimentos descritos, ou quem sabe recriados, num contrato em que aceitamos a condição incômoda --e ao mesmo tempo vantajosa --de voyeurs.
Livros como "Formas de Voltar para Casa" e "O que Amar Quer Dizer", é óbvio, têm vantagem mercadológica frente a tantos outros que disputam os mesmos e escassos canais de divulgação e vendas. Afinal, estamos na era da narrativa confessional, do interesse mórbido na intimidade alheia.
Quem publica algo do gênero precisa assumir as consequências de suas escolhas. No caso do romance sobre o meu tio, dar entrevistas dizendo que o tema abordado é a medicina, a infância ou a questão da segurança dos equipamentos náuticos no Brasil --o que poderá ser nas três hipóteses, sem tornar menos importante a pessoa real que usei para chamar a atenção-- é querer ficar apenas com a parte boa da mamadeira.
Leitores não são tão manipuláveis assim. Achar o contrário é desconhecer a própria natureza humana. Uma ilusão, onipotência ou ingenuidade pouco lisonjeira para quem vive --justamente-- de observar e retratar o comportamento dos homens.
Texto de Michel Laub, publicado na Folha de São Paulo.
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