sábado, 9 de agosto de 2014

A questão nacional


Em um planeta no qual os territórios e populações se encontram tão interconectados como hoje, ainda faz sentido falar em "questão nacional"? Termos bem antigos como "imperialismo" ainda têm algum sentido? Em outras palavras, existem forças e interesses que, por estarem além das fronteiras de cada nação, influem de maneira particular sobre o andamento da luta de classes e da política no interior delas?
Tomado o tema "cum grano salis", isto é, preservado o bom senso, diria que sim. Acontecimentos recentes o comprovam, sem precisar ir às fronteiras de Rússia e Ucrânia ou à faixa de Gaza para percebê-lo. Bem perto de nós, a briga entre a Argentina e os "fundos abutres" envolve também a soberania daquele país em adotar a política econômica apoiada pela maioria democrática do seu eleitorado. Afinal quando Nestor Kirchner, em 2003, decidiu peitar o FMI para reduzir de maneira substancial o valor da dívida argentina, o que agora, na prática, é questionado por uma corte de Nova York, estava só cumprindo o programa em nome do qual fora eleito.
São muitas as tecnicalidades jurídicas do caso, mas penso que as decisões do juiz Thomas Griesa, não por acaso um ultraconservador, segundo escreveu na Folha Marcelo Miterhof (7/8), destinam-se, na verdade, a punir a Argentina pela audácia de ter, em benefício da recuperação econômica nacional, afrontado importantes interesses estrangeiros dez anos atrás. Mas se as instituições de maior peso compuseram-se com Buenos Aires, permitindo que os argentinos aproveitassem o boom das commodities e pagassem aos bancos o que era razoável, por que reabrir o tema agora?
Ao que parece, a crise capitalista de 2008-2014, não tendo encontrado saídas à esquerda, resultou em um cenário desenhado pela direita. Nele, há um vale-tudo entre as nações. A Alemanha, por exemplo, não hesitou em afundar todo o sul do continente europeu na desgraça social para manter uma estabilidade interna garantida pelo que ainda resta do antigo Estado de bem-estar. Com isso, preservou-se, mas destruiu o espírito igualitário no qual foi construída a União Europeia.
A principal consequência das sentenças de Griesa, que a Suprema Corte do EUA poderia, mas não quis, reformar, é abrir no continente americano, guardadas as proporções, um tipo de conflito semelhante ao europeu. O que está em jogo, em última análise, é se os Estados nacionais do sul da região poderão confrontar o mercado, quando isto for vital para as respectivas possibilidades de desenvolvimento, mesmo ao custo de opor-se aos norte-americanos.
O assunto, direta ou indiretamente, estará na pauta da próxima eleição brasileira.


Texto de André Singer, na Folha de São Paulo

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