domingo, 24 de agosto de 2014

A captura do cronópio

A captura do cronópio

A história do "clic" que fisgou Julio Cortázar

RESUMO A fotógrafa argentina Sara Facio, autora do retrato mais conhecido de Julio Cortázar, conta como conheceu o escritor numa primavera, em Paris, em 1967. Comemorando os 100 anos de nascimento do autor de "O jogo da Amarelinha", museu em Buenos Aires abre duas mostras com acervo de objetos e fotos do ficcionista.

GABRIELA SÁ PESSOA

"A FOTO DO CIGARRO." Com essas palavras, a fotógrafa Sara Facio se refere à imagem em preto e branco em que Julio Cortázar, vestindo terno e gravata, leva um cigarro no canto da boca, seguindo a direção do penteado, para a esquerda de quem olha. No centro da imagem, os olhos do escritor miram o obturador de Sara em um dia de março de 1967 em Paris, no instante em que ela tirava o que, mais tarde, se revelaria um dos retratos definitivos do autor --ele próprio teria dito à fotógrafa que aquele seria seu retrato oficial.
"Aqui na Argentina essa é a foto de Cortázar. Fico feliz, porque ele está muito bonito, parece um galã", comenta a fotógrafa e amiga do escritor à Folha, por telefone.
Facio, hoje com 82 anos, foi uma grande impulsionadora da arte fotográfica na América Latina. Ao lado de Alicia D'Amico, morta em 2001, fundou a primeira editora de livros de fotografia de seu país, La Azotea, e produziu dois dos mais importantes fotolivros do continente: "Buenos Aires Buenos Aires" e "Humanario" --ambos em parceria com Cortázar.
O Museu Nacional de Bellas Artes, em Buenos Aires, escolheu "a foto do cigarro" para ilustrar o material de divulgação das mostras com que a instituição celebrará o centenário do autor: "Los Otros Cielos" e "Los Fotógrafos: Ventanas a Cortázar" serão abertas na terça (26), aniversário do escritor.
A primeira --cujo título faz referência a um conto de "Todos os Fogos o Fogo"-- reunirá objetos, imagens e registros caseiros feitos em super-8, num recorte biográfico, além das capas de livros, aspecto que ocupava muito o escritor. Além disso, obras que integram o acervo do MNBA e que foram citadas por Cortázar em seu livro "Territorios" (1978), no qual se debruça sobre artes plásticas, estarão expostas. Já a segunda mostra é dedicada à figura do escritor e tem fotos de, entre muitos outros, Facio e D'Amico.

BUENOS AIRES, PARIS Se a "foto do cigarro" ficou para a história como um ícone, entre Sara e Julio ela é o instantâneo do início de uma longeva amizade, que começou com uma proposta de parceria artística. O retrato foi feito no dia seguinte ao que eles se conheceram. Na primavera de 1967, ela viajou a Paris a pedido da Editorial Sudamericana para encontrar o escritor, que vivia na capital francesa desde os anos 50.
"Publicar um fotolivro era muito difícil. As técnicas de impressão disponíveis à época também não ajudavam. Batemos na porta de muitas editoras. Até que caímos na Sudamericana, então a editora mais importante do país", diz.
A casa comprou a ideia de editar "Buenos Aires Buenos Aires" (projeto dela com D'Amico) com a condição de que um escritor de renome integrasse o projeto, como uma espécie de aval. Já que a Sudamericana havia publicado, anos antes, "O Jogo da Amarelinha", a escolha não foi difícil. "Ele estava na crista da onda", relembra.
A editora entrou em contato com ele, mas Facio e D'Amico, que já eram leitoras de Cortázar, fizeram questão de mostrar as fotos pessoalmente. Com os protótipos de impressão debaixo do braço, a dupla viajou a Paris, para uma reunião no apartamento do escritor.
"Tocamos a campainha, e Cortázar abriu a porta. A primeira impressão que tive é que ele era alto, alto, alto", relembra Sara, aos risos --a grande estatura era um traço notório do físico do escritor. Era a primeira vez na vida que eles se viam. Antes do encontro, Facio nem sequer havia visto uma foto dele. "Quando começamos a conversar, os olhos me chamaram a atenção, o rosto, o interesse que tinha por tudo. Era um homem muito vivo, inteligente e simpático."
Na sala do apartamento onde Cortázar vivia com Aurora Bernárdez, sua primeira mulher, Facio e D'Amico mostraram as fotos tomadas ao longo de "quatro ou cinco anos" em Buenos Aires. As imagens são uma leitura sentimental das ruas e de sua gente, do ponto de vista de duas fotógrafas escoladas nas artes plásticas.
"Caminhávamos pelas ruas e víamos o que nos interessava, a luz, uma curiosidade. Faço isso até hoje, fotografar as pessoas em seu momento, com um gesto especial, um sorriso, uma melancolia que transmita alguma verdade."
Cortázar ficou emocionado ao ver as fotos da cidade. "Não digo que ele chorasse, mas que ficou com os olhos marejados."
Nas imagens, ele reconheceu muito do clima que ainda associava à capital argentina, mas se assombrou ao ver o que não conhecia. Uma das novidades que o impressionaram foi a foto da arquibancada de um estádio de futebol tomada por uma multidão de torcedores. Em seu ensaio para o livro, ele descreveria a cena como uma "parede humana".
Enquanto conversavam sobre o livro, Sara aproveitou pra tirar "umas 400 fotos" de Cortázar na sala do apartamento. "Ele se deixou fotografar porque pensou que nenhuma foto ia sair, porque o ambiente era escuro e eu não usava flash. Dizia: Não vão sair com essa luz, não vão sair'." As fotos seriam publicadas depois em "Julio Cortázar" (La Azotea, 2009).
Cortázar podia até não entender as minúcias técnicas envolvidas no processo de tirar fotografias --uma das muitas maneiras de "combater o nada", como escreveu em "As Babas do Diabo". A fotografia, no entanto, foi uma das principais metáforas de seu modo de narrar e tema recorrente em sua produção ficcional e ensaística.
Um de seus textos críticos mais famosos e sempre citados quando a intenção é comparar as duas linguagens, "Alguns Aspectos do Conto" estabelece um paralelo entre o ato de escrever um conto e o de clicar uma foto: dada a brevidade tanto de um como de outro gênero, cabe a eles atacar a realidade em profundidade, captando o instante definitivo de uma cena.
"Na obra de Cortázar, as fotos se parecem com os contos particularmente no que diz respeito à necessidade de um intérprete, de um leitor para completar a informação. Há uma série de pistas, como em um romance policialesco, que deixam algo para a imaginação", argumenta Horacio Fernández, historiador de fotografia e um dos organizadores do volume "Fotolivros Latino-americanos" [Cosac Naify, R$ 149, 256 págs.].
Fernández lembra que, além de teorizar sobre o assunto, Cortázar produziu dois livros em que a imagem tem papel preponderante e que foram definidos pelo escritor como almanaques: "Último Round" e "A Volta ao Dia em 80 Mundos". Além disso, Cortázar escreveu os ensaios que acompanham as publicações de fotografia "Alto el Perú", de Manja Offerhaus, e "Paris ou la Vocation de l'Image", de Alécio de Andrade (1938-2003), brasileiro que se radicou na França.
Na opinião do historiador, porém, no campo essencialmente fotográfico suas colaborações importantes seriam com Facio e D'Amico. Além de "Buenos Aires Buenos Aires", Cortázar escreveu os ensaios de "Humanario", trabalho em que as fotógrafas retratam as más condições de vida em um hospital psiquiátrico.
"Queríamos que Samuel Beckett escrevesse os textos. Éramos muito audazes", brinca Facio. As amigas mostraram os originais a Cortázar, que, na memória da fotógrafa, era "bem relacionado" e conhecia o editor do escritor irlandês. O contato com Beckett não deu certo, e Julio, que havia gostado das imagens de "Humanario", se ofereceu para assinar os ensaios.

"CLIC" Ainda na sala de seu apartamento, naquele dia de março de 1967, Cortázar propôs a Sara um novo encontro. "Como aqui não tem luz e nenhuma foto ficará boa, amanhã nos vemos na Unesco, onde tem um jardim e sol", disse à fotógrafa.
Facio diz que Cortázar foi um bom modelo. "Claro que queria ser fotografado. Era um artista, como não ia querer?", diz ela, lembrando que à época não era comum que se vissem fotos dos literatos na imprensa.
Sara Facio garante que as fotos tomadas no jardim da Unesco, onde o escritor trabalhava como tradutor, não foram posadas. O cigarro, que hoje define o retrato, apenas estava lá. "Nessa época, fumava-se espantosamente. E nunca disse a ninguém como a pessoa deveria agir. Estávamos conversando e, quando eu gostava de um gesto, fazia clic'."
Sara e Cortázar se corresponderiam --e ela o fotografaria-- por anos. Muitas das conversas entre os dois, em cartas ou pessoalmente, eram sobre fotografia. Ela mesma não arrisca dizer, contudo, o que o escritor viu de si naquele retrato, a ponto de dizer que era uma de suas fotos prediletas. Assim como Cortázar, o retrato, por fim, precisa de um intérprete.

Reprodução da Folha de São Paulo

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