quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Assassinatos públicos

Assassinatos públicos cometidos por terroristas islâmicos, quadrilhas em penitenciárias brasileiras ou, pode-se afirmar, a polícia local do Missouri, impõem algumas perguntas de virar o estômago. Os críticos vão achar absurdo que a Síria seja agrupada com Ferguson e Cascavel. Mas as decapitações, que já deixaram de ser a seara da Idade Média ou de fundamentalistas, visam semear o terror, a não ser, é claro, que a plateia visada esteja entorpecida.
Nas duas últimas semanas, o mundo inteiro viu os pais de Michael Brown e James Foley chorar por seus filhos. A cobertura pela mídia brasileira de Ferguson, St. Louis, do governador e da polícia estadual do Missouri e de seus tropeços ao lidar com os protestos incluiu, corretamente, análises das divisões de raça e classe nos EUA, a militarização da polícia e a justiça parcial do sistema legal norte-americano.
Uma revisão não científica das mídias sociais brasileiras revela um interesse, embora com um toque de "Schadenfreude" ("deleite com o sofrimento alheio", em alemão), pelas questões ainda não resolvidas pelo movimento americano dos direitos civis.
Mas também detecto um pouco de negação. Onde está a indignação pública no Brasil com incidentes neste ano de violência presidiária que já deixaram vários detentos decapitados?
Por que os grupos de direitos humanos como Conectas, Human Rights Watch ou o projeto da Universidade Cândido Mendes são vozes tão isoladas quando falam das condições nas prisões e das distorções de raça e classe do sistema brasileiro de justiça criminal?
A reação blasé às decapitações parece condizer com a aparente tolerância do mau tratamento persistente e desproporcional de brasileiros negros e/ou pobres por uma polícia militarizada. Nos protestos do ano passado, quando vítimas dos excessos policiais foram jornalistas de pele clara, o volume e intensidade do ultraje manifestado pelo público, a mídia e autoridades eleitas foram positivamente virais. Hoje, o silêncio está ensurdecedor.
Em contraste com isso, a decapitação do fotojornalista americano pelo Estado Islâmico é uma tragédia nacional que impôs uma mudança potencialmente importante na estratégia de segurança nacional. Uma das vítimas das decapitações em Cascavel era um estuprador, não um fotojornalista intrépido. Mas a essência de uma sociedade regida por leis é que a identidade da vítima não deve moldar a reação do sistema legal ou as condições de encarceramento. Como Cascavel, Rikers Island, em Nova York -uma prisão com funcionários insuficientes e que, conforme revelado, sujeitou detentos ao que só pode ser descrito como tortura-, se destaca como exemplo de tal viés.
EUA e Brasil têm respectivamente a terceira e quarta populações carcerárias do mundo. Há alguns anos, Brasília e Washington lançaram um "plano de ação conjunta para a igualdade racial e étnica". Que tal lançarmos um plano para tratar do "perfil racial" (seleção baseada em critérios raciais ou étnicos), condições das prisões e militarização da polícia?


Texto de Julia Sweig, na Folha de São Paulo

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