quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Passando a língua nas normas gramaticais


Tem um projeto de simplificação da ortografia da língua portuguesa usada no Brasil tramitando no Senado. Eu sou a favor. Por uma simples razão: por que não? Língua é convenção. Não é uma verdade natural. Já escrevemos “paiz”. Há quem fique horrorizado. É só uma questão de hábito. Os argumentos dos que rejeitam essa reforma não são racionais. Não passam de exclamações subjetivas: que horror! Vai ficar muito feio! O que pretendem fazer com nossa língua! Lembra o apego de alguns ao papel. Falam assim: nada pode substituir o papel. Claro que pode. O papel é só um suporte. Não afeta as ideias. A paixão pelo papel é puro hábito geracional. Apareceu um suporte melhor, mais barato e mais eficaz. O papel pode dançar. Sinto muito.
O acordo ortográfico entre os países de língua portuguesa acabou com o trema. Ninguém morreu. O trema era útil. Eu gostava do trema. Indicava a maneira de pronunciar certas palavras. Por que não mudar outras coisas? Para que ter quatro maneiras de escrever “porque”, “por que”, “porquê” e “por quê”? Qual é mesmo a diferença entre “por que” e “por quê”? Eu sou a favor de escrever “omem”. Sou a favor de que se escreva como se fala. A escrita existe para representar a língua falada. Para que escrever letras que não são pronunciadas? Apenas para manter um rastro da origem da palavra? Para que escrever com “s” algo que soa como “z”? Abaixo “ch”, “ss” e “ç”!
Essas sutilezas só servem para decidir vaga em concurso e como sistema de hierarquia social. Não vejo qualquer problema em escrever “qero” em lugar de “quero”. Tem gente indignada com a galera que escreve “vc” em vez de “você”. Ora, você é o “vc” de vossa mercê. A nova reforma acabaria com o hífen. Beleza. Chega de tracinho para acolherar certas palavras. Nem o Evanildo Bechara, guru dos gramáticos brasileiros, deve conhecer a regra do hífen completa. Exame passaria a ser “ezame”. Faz sentido. A escrita é um registro do falado. Deve comunicar. Asa voltaria a ser “aza”. A sabedoria popular simplifica e dá lógica a essas grafias há muito tempo. Os doutos não gostam disso, pois lhes tira o poder de dizer o que é certo e errado. Os “cultos” detestam isso, pois a língua serve-lhes de distinção.
– Ora, como tudo cança, esta monotonia acabou por exhaurir-me tambem. Quiz variar, e lembrou-me escrever um livro. Jurisprudencia, philosophia e política acudiram-me (…) Póde ser minha senhora. Oxalá tenham razão; mas creia que não fallei senão depois de…
Quem foi o analfabeto que escreveu isso? Machado de Assis no “original” de Dom Casmurro. Esse era o correto da sua época. É correto, em francês, dizer “mais grande” e não pronunciar o “s” do plural (essas casa bonita). Em português, não pode. Tudo convenção, história, invenções humanas ao saber dos tempos e das circunstâncias. A língua passa. Diminuiu-se a população carcerária acabando com certos crimes. Reduz-se o analfabetismo acabando com certas regras.
– Cinismo?
Apenas um roçar de língua nas asperezas do poder simbólico.

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