terça-feira, 12 de agosto de 2014

Licença para matar nos confins da Índia

Licença para matar nos confins da Índia

Lei dá carta branca para soldados e policiais
 
Por GARDINER HARRIS

MAYAI LEIKAI, Índia - Uma dúzia de soldados arrombou as portas de uma pequena casa no meio da noite, arrastou Thangjam Manorama para um quarto e começou a torturá-la. Seu irmão mais velho tentou detê-los e foi duramente espancado. Sua mãe se levantou para defendê-la, mas levou uma pancada e desmaiou.
Depois de aproximadamente uma hora, Thangjam foi levada para fora da casa. Na manhã seguinte, a família encontrou seu corpo crivado de balas no acostamento da estrada. Os soldados alegaram que Thangjam era uma insurgente que foi baleada enquanto tentava escapar. Um médico legista disse que ela foi alvejada à queima-roupa enquanto estava deitada, e que as manchas em seu vestido eram de sêmen, mas os tiros em sua vagina impossibilitaram a comprovação de estupro. Não havia dúvida sobre os responsáveis: os soldados não fizeram nenhum esforço para esconder seus rostos.
Uma década depois, ninguém foi preso ou acusado pelo crime. Ativistas, advogados e outras pessoas dizem saber exatamente o motivo: uma lei da era colonial em vigor na periferia da Índia que dá total imunidade aos soldados indianos em tribunais civis para todos os tipos de crimes cometidos, incluindo o estupro.
Defensores de direitos humanos há anos pedem a revogação da lei, conhecida como Lei de Poderes Especiais das Forças Armadas. Mas a lei resiste. Sendo a maior democracia do mundo e berço de Mohandas K. Gandhi, pioneiro da resistência pacífica, a Índia há muito tempo é considerada umas das nações mais progressistas do mundo, com sólidos programas de combate à pobreza e esforços para fornecer benefícios especiais às comunidades marginalizadas. O país tem atualmente 168 entidades estaduais e federais de defesa de direitos.
Porém, uma realidade mais sombria se esconde por trás dessa imagem progressista, especialmente em localidades de difícil acesso. Na Caxemira, há milhares de sepulturas sem identificação em cemitérios secretos criados pelo Exército e pela polícia para esconder seus crimes. Mesmo quando autoridades civis confirmam que inocentes foram assassinados, não acontece nada.
"Temos todas essas importantes instituições de direitos humanos, mas ninguém na Índia consegue justiça quando o Estado assassina um membro de sua família", disse Henri Tiphagne, presidente do conselho do Fórum Asiático para os Direitos Humanos e o Desenvolvimento, com sede em Bangcoc. Comissões do governo têm repetidamente recomendado que a lei seja revogada, mas o Exército da Índia tem minado todos esses esforços.
"Se não tivéssemos essa proteção constitucional, você gostaria que fôssemos arrastados para um tribunal por acusações pequenas?", disse o general J. J. Singh, chefe do Exército, em uma entrevista coletiva em 2005. A lei está em vigor em grande parte do nordeste da Índia, uma protuberância territorial que às vezes não passa de 22 km de largura, contornando o norte e o leste de Bangladesh A ampla variedade de idiomas, culturas e animosidades da região há décadas alimenta revoltas sangrentas.
Soldados e policiais nem se preocupam em esconder as provas quando assassinam e estupram inocentes, disse Babloo Loitongbam, fundador da Human Rights Alert, em Imphal. "A liderança política e o Judiciário criaram um ecossistema onde a matança patrocinada pelo Estado é rotineira, e eles fazem isso com total insensibilidade", disse Loitongbam.
Uma investigação realizada no ano passado por uma comissão nomeada pela Suprema Corte da Índia, envolvendo seis casos representativos no Estado de Manipur, encontrou explicações oficiais para as mortes tão desprovidas de bom senso e em desacordo com os indícios disponíveis que a conclusão foi de que as vítimas foram todas assassinadas. Ainda assim, ninguém foi preso. Um dos agentes suspeitos recebeu a mais elevada condecoração indiana em tempos de paz, por bravura.
O ministro-chefe de Manipur, Okram Ibobi Singh, não respondeu a telefonemas para comentar o assunto. Um assessor recusou um pedido de entrevista com o ministro do Interior de Manipur, Gaikhangam Gangmei, encarregado de supervisionar a polícia. Os esforços de associações de vítimas, bem como a investigação da Suprema Corte surtiram efeito, disse Loitongbam, do Human Rights Alert.
Os policiais e soldados antes matavam centenas de pessoas todo ano; neste ano, a cifra caiu drasticamente. Viúvas formaram a Associação Manipur de Famílias de Vítimas de Execuções Extrajudiciais para ajudar as mulheres a obterem justiça.
A associação registrou 1.528 assassinatos cometidos por policiais entre 1979 e 2012, o que representa apenas uma fração das execuções ocorridas na Caxemira no período, mas suficiente para afetar a maioria das comunidades.
O Ministro da Defesa, Arun Jaitley, disse em junho que a lei de imunidade permanecerá em vigor até que a paz esteja assegurada.


Reprodução de reportgem do The New York Times, na Folha de São Paulo

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