Mal entrou em vigor e o Marco Civil, a lei que protege direitos
fundamentais na internet brasileira, já enfrenta uma prova de fogo.
Trata-se da forma como o Judiciário e as autoridades de investigação
estão aplicando-o (ou não). A questão materializou-se de forma
preocupante no inquérito policial que investigou os suspeitos de
cometerem crimes relacionados às manifestações. Na busca por provas para
motivar o indiciamento, a internet foi um dos principais instrumentos
utilizados.
As autoridades demandaram a quebra do "sigilo das comunicações (texto,
imagens, arquivos, áudio, localização etc.)" de 52 usuários de perfis do
Facebook. Além disso, pediram "a criação de contas de espelhamento dos
perfis" de modo que "os logins e senhas das contas-espelho" fossem
"fornecidos à autoridade policial". O juiz consentiu e expediu ordem
para que fossem cumpridos os pedidos. A questão é saber quais os limites
legais aplicáveis, já que os requerimentos foram os mais amplos
possíveis.
O Marco Civil e a lei nº 9.296 (que regula a interceptação de
comunicações) apontam em sentido diverso. A quebra de sigilo deve ser
concedida apenas quando "a prova não puder ser feita por outros meios" e
só quando houver "fundados indícios da ocorrência do ilícito". Seguindo
a Constituição, o Marco Civil assegura a "inviolabilidade da intimidade
e da vida privada".
Determina que "cabe ao juiz tomar as providências necessárias à
preservação da intimidade e da vida privada do usuário". Conceder quebra
de sigilo tão ampla e genérica viola a lei e a Constituição.
O acesso a comunicações privadas pela internet só pode acontecer em
casos excepcionais, em que haja indícios de crime de maior potencial
ofensivo e deve ser circunscrito ao objeto específico da investigação
--a autoridade não pode usar outros ilícitos contra o investigado.
A Suprema Corte dos EUA definiu recentemente um princípio importante.
Comparou atividades on-line à proteção da inviolabilidade do domicílio,
afirmando que uma busca feita em um dispositivo expõe muito mais uma
pessoa do que uma busca feita em sua residência. Faz sentido. O que
impede que a internet se torne uma máquina de vigilância perfeita é a
lei. Sem freios e contrapesos, direitos fundamentais como a privacidade e
a liberdade de pensamento (que é o seu corolário), vão sendo minados.
Quando o escândalo Snowden foi revelado, o Brasil foi à ONU e emitiu
reação em prol da privacidade. A posição precisa ser disseminada também
na Justiça. Sobre isso a presidente tem em mãos uma oportunidade. Na
nomeação do próximo ministro do Supremo, deveria considerar juristas
comprometidos com os valores do Marco Civil da Internet. É uma forma de
sinalizar para o país e para o Judiciário a importância dos direitos
civis na internet.
Texto de Ronaldo Lemos na Folha de São Paulo.
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