Com a palavra, as vítimas. Como parte das negociações de paz iniciadas há quase dois anos, o governo de Juan Manuel Santos e a guerrilha das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, extrema esquerda) aceitaram ouvir o que têm a dizer todos aqueles que pagaram o preço do interminável conflito. São mais de 6 milhões deles, a maior parte civis.
"Jamais um processo de paz havia concedido tal lugar às vítimas", afirma Fabrizio Hochschild, coordenador residente das Nações Unidas. "É algo inédito, na Colômbia e no mundo inteiro."
Uma delegação de 60 representantes das organizações de vítimas é esperada para o dia 16 de agosto em Havana (Cuba), onde estão sendo realizadas as negociações de paz. Os negociadores, que já abordaram a questão do desenvolvimento rural, da futura participação política dos guerrilheiros desmobilizados e do tráfico de drogas, devem entrar em um acordo quanto aos mecanismos que permitirão o cumprimento do direito à verdade, à justiça e à reparação das vítimas.
"Sessenta representantes não é muito. Somos em muitos e tão diferentes", diz Marleny Orjuela, que dirige uma organização de ex-reféns das Farc. No domingo (2), ela fez a viagem a Cali para assistir ao grande "Fórum das Vítimas" organizado com o apoio da ONU e da Universidade Nacional. As duas instituições, ajudadas pela Conferência Episcopal, devem elaborar a lista das organizações que estarão em Havana.
6.657.985 vítimas se apresentaram
Todas as vítimas querem ser ouvidas: Edelmira, cujo filho mais velho, recrutado à força pela guerrilha aos 14 anos de idade, nunca voltou da selva; Carlos, que perdeu uma perna por causa de uma mina antipessoal; Rosa, que viu com seus próprios olhos os paramilitares torturarem até a morte seu marido; Carmenza, cujo pai, sindicalista, desapareceu em um dia de 1998; Jineth, estuprada pelos paramilitares; Inti, que abandonou a terra de seus ancestrais sob ameaça de armas; Sigifredo, refém das Farc durante sete anos.
"Não haverá paz duradoura se as vítimas não forem parte ativa da reconciliação", resume Alejo Vargas, da Universidade Nacional.
A paz é o objetivo a ser atingido pelo presidente Santos, que, na quinta-feira (7), assumiu seu segundo mandato de quatro anos. Já antes da abertura das negociações com a guerrilha, uma "lei das vítimas e da restituição das terras" havia sido votada. Ela estabelece em 1985 a data a partir da qual um cidadão pode pedir reparação.
No total, 6.657.985 vítimas se apresentaram. O maior contingente é o dos deslocados. Em 30 anos, mais de 5 milhões de colombianos abandonaram suas terras, fugindo de combates e agressões.
Há quem considere que somente as vítimas das Farc deveriam participar das negociações de Havana. Assim como vários ex-reféns, Clara Rojas, companheira de cativeiro de Ingrid Betancourt durante mais de seis anos, hoje senadora, assumiu publicamente sua posição nesse sentido.
Todos os setores estarão representados em Havana
Não é o que acha Ivan Cepeda, cujo pai, deputado comunista, foi assassinado pelo exército em 1994 e que exige que "as vítimas dos crimes do Estado também sejam ouvidas."
Ayda Avella, sobrevivente da União Patriótica (o partido de esquerda que teve mais de 4.000 militantes assassinados nos anos 1980) concorda. "Os paramilitares de extrema direita agiram e cometeram seus crimes com a cumplicidade, por ação ou particpor omissão, do Estado colombiano. O governo sentado à mesa de negociações também tem contas a prestar", segundo Avella, que voltou ao país e à política após 17 anos de exílio.
A coabitação não é fácil entre as organizações de vítimas de crimes do Estado e dos paramilitares, muitas vezes de esquerda, e as organizações de vítimas das Farc, às vezes próximas ao ex-presidente linha dura Álvaro Uribe. O próprio país é polarizado entre partidários e detratores do processo de paz. Mas são muitos os que defendem a união do movimento das vítimas, e está acordado que todos os setores estarão representados em Havana.
"As divisões e as tensões são inevitáveis", acredita Juan Fernando Cristo, autor da lei sobre as vítimas. "Elas são saudáveis e não podem deixar que se esqueça o essencial: as vítimas são capazes de se sentarem juntas, de falar sobre sua dor e discutir sobre o futuro do país. É algo novo. E é imenso."
Reportagem de Maria Delcas, para o Le Monde, reproduzida no UOL.
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