sábado, 23 de agosto de 2014

No Iraque, o califado destrói patrimônio da Mesopotâmia para construir um novo

Bagdá, Mossul e Erbil são as manchetes de hoje. Os jihadistas do Estado Islâmico estão plantados na entrada do Curdistão e ameaçando, mais ao sul, a célebre capital iraquiana.
A história do Iraque, situado entre o Tigre e o Eufrates, antiga Mesopotâmia e berço de civilizações, vem de milênios. Os inúmeros povos que ali se instalaram se basearam nas mesmas raízes culturais. À frente de vastas construções políticas, os soberanos, fossem eles assírios, babilônios ou persas, reinavam sobre povos respeitando suas diversidades, suas crenças e seus costumes. Nas religiões politeístas, como os deuses dos vencedores eram por todos reconhecidos superiores aos deuses dos vencidos, não era preciso destruir sistematicamente seus santuários.
As guerras eram assunto de homens, não de deuses
Pelo contrário, as estátuas dos deuses vencidos eram levadas para a capital do reino vencedor e colocadas dentro de templos, manifestando através de sua presença, diante do olhar de todos, a vitória conquistada e facilitando a aculturação. Como os impostos e tributos eram proporcionais à riqueza de cada um dos povos dominados, o soberano tinha interesse em que todos os povos pudessem viver em harmonia dentro de seu reino.
As guerras, que eram assunto de homens e não de deuses, eram motivadas sobretudo pelo acesso à água e aos hidrocarbonetos, entre eles o betume, usado na época para impermeabilizar os canais de irrigação e os barcos, necessários à prosperidade agrícola e comercial, as principais fontes de riqueza.
Como nessa região argilosa e sem florestas as madeiras e as pedras necessárias às construções de prestígio eram raras, os monumentos, salvo exceções, eram preservados ao máximo ainda que eles pudessem ser reutilizados com modificações. Não se cogitava destruir por destruir.
Mosaico de povos
Embora as crenças tenham se diversificado e evoluído ao longo do tempo, essa terra soube acolher a todos. Assim, sobre um templo dedicado ao deus Assur foi erguida uma igreja, e sobre um túmulo do século 8 a.C. foi construída uma mesquita. Esse mosaico de povos de diferentes religiões, que por muito tempo constituiu a singularidade e a riqueza dessa região, hoje está sendo colocado em xeque.
O Estado Islâmico que foi criado no norte da Síria, bloqueado para o oeste pelo Mar Mediterrâneo, decidiu se estender para o Leste, posicionando-se no norte do Iraque. No Tigre, ele detém as barragens rio acima de Mossul, antiga Nínive, capital do império assírio de jardins exuberantes. Dessa forma ele passou a controlar o acesso à água e à eletricidade para todas as cidades situadas rio abaixo. Ele está se dirigindo para Erbil, antiga Arbil, famosa pela batalha entre Alexandre o Grande e Dario, região rica em hidrocarbonetos que desperta cobiça. Mas não se trata mais de reinar sobre povos diversos e variados. Com os avanços técnicos, a riqueza não está mais nos braços dos homens.
Dentro desse território, assim como Deus criou o mundo, foi implantada uma estrutura material. É verdade que em toda guerra há destruição, que pode ser colateral como na Síria, mas que nesse caso tem sido proposital. Os monumentos tornam-se alvos por aquilo que representam, e é sobre uma tábula rasa que se reconstrói um novo mundo.
Mesquita dinamitada
Então não é necessário aquilo que constitui a identidade de uma cidade, como o minarete de Al-Hadba em Mossul, tão célebre no Oriente e pelas mesmas razões que a Torre de Pisa (Itália) no Ocidente, salvo por pouco por uma corrente humana. Tampouco é necessária a reputação de um santuário. Sendo assim, a mesquita que se erguia sobre a tumba de Jonas foi dinamitada. As preces devem ser dedicadas a Deus, não a um homem, ainda que um profeta!
Contudo, Jonas foi aquele que adquiriu discernimento e razão depois de ter sido engolido por um peixe, símbolo da sabedoria no Oriente antigo. O Corão dedica a ele a décima surata. Muito antes, na religião cristã, ele prenunciava Cristo, e na igreja assírio-caldeia, cujos ritos são mais antigos que os da Igreja de Roma, seu nome, associado ao arrependimento humano e ao perdão divino, é tema para uma das maiores festas. As destruições não são somente materiais, elas são carregadas de sentido!
Após a criação do mundo vem a criação do homem. O novo Estado pretende esvaziar o território da população que não corresponda à imagem que ele mesmo esboçou. As tomadas de Mossul e de Karakosh têm levado, entre outros, os cristãos a se refugiarem no Curdistão autônomo, onde eles se amontoam dentro da igreja de São José.
Cidades cosmopolitas
Sob um sol escaldante, com temperaturas que ultrapassam os 40 graus Celsius, os yazidis têm fugido para as montanhas desnudas do Sinjar, esperando assim escapar do massacre. A crença deles, que são considerados adoradores do diabo por aqueles que os perseguem, tem suas raízes no Império Persa, bem antes do surgimento do cristianismo e mais ainda do islamismo.
Antes de criar a Terra e o homem, Deus teria criado sete anjos guiados por seu enviado, portador da luz que alguns associam a Lúcifer (em latim, "lux" significa "luz" e "ferre", "carregar"). Para eles, o bem e o mal existem em cada um, e cabe ao homem escolher entre os dois. Essa liberdade, e de forma mais geral a liberdade de consciência, é incompatível com um poder religioso coercitivo, qualquer que seja ele. O mesmo vale para todas as minorias religiosas que se encontram em contextos similares.
O Estado Islâmico no Iraque e no Levante, instalado na Mesopotâmia, se tornou um califado, uma vez que seu líder retomou o título carregado pelos sucessores de Maomé. De seu sucessor, ele pretende passar a ser sua voz, e ainda além, a voz de Deus.
Assim como seus antecessores, ele tem exercido seu poder sobre essas áreas desérticas dentro de cada uma das cidades que foi conquistando dia após dia. Mas muito diferentes da Bagdá do califa Haroun al-Rashid (763-809) ou da Constantinopla (Istambul) de Solimão o Magnífico (1494-1566) - padixá do islamismo, ou seja, "comandante dos crentes", aliado do rei cristão da França, François 1º -  cidades cosmopolitas de economia próspera, inúmeras riquezas, abundância cultural e na vanguarda artística.

Reprodução do Le Monde no UOL

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