O sumiço de livros vai acontecendo cada vez mais aqui em casa. Dei pela falta, outro dia, de um guiazinho de viagens muito bonito, com a capa de pano azul-clara, cheio de ilustrações coloridas, quase aquarelas, no estilo da década de 1950.
Era uma espécie de guia de boas maneiras, a ser usado por turistas em todas as partes do mundo. Chamava-se "Savoir Faire International" e tinha mais do que regras de boa educação.
Lembrava o viajante que sem aspirar o "h", por exemplo, sua comunicação nos países de língua inglesa piora bastante. E explicava (estamos em 1950) que não adianta reclamar dos lençóis nos hotéis da Alemanha.
Ainda em 1986, entendi do que se tratava. Os alemães tinham uma espécie de colcha, muito mole e recheada de paina, que não servia exatamente de edredom; havia uma espécie de fenda, pela qual o dorminhoco deveria inserir-se inteiramente.
"Resigne-se ao desconforto das camas alemãs", dizia o livrinho. Lembro-me de pouca coisa mais. Mas não esqueço que, folheando os capítulos, cada qual dedicado a um país, topei com frases simpáticas a respeito do Brasil.
"Não se preocupe demais em fazer as coisas certas", ensinava o guia. "A simples condição de estrangeiro o fará ser visto com bons olhos."
Nos outros Estados eu não tenho certeza absoluta, mas como paulistano sempre senti que podia assinar embaixo. Havia muito poucos turistas estrangeiros por aqui. Ainda hoje, se vejo algum, minha vontade é fazer festa. Quero ajudar, quero mostrar coisas, quero mostrar que sei a língua deles, quero me enturmar.
Acompanhei pouco a polêmica em torno da chegada dos médicos cubanos. Do ponto de vista cultural, "antropológico", social, o que quisermos, acho de todo modo que aconteceu um fato inédito na história do país --vai ver que só nos tempos coloniais ou de Dom João 6º produziu-se coisa parecida.
Cubanos desembarcam no aeroporto e são hostilizados por médicos brasileiros. Nunca, pelo que me lembro, eu tinha visto manifestações de xenofobia tão explícitas, tão grosseiras, em nosso território.
O mito do brasileiro acolhedor e festeiro --só um mito? Até jogadores de futebol argentinos foram recebidos com carinho pelas torcidas de times brasileiros. Tevez, o simpaticíssimo e modesto artilheiro do Corinthians, será que reclama de hostilidade?
Com toda a implicância que muitos brasileiros têm contra argentinos, não creio que estes sejam maltratados aqui. Certo, o turista não vem para tirar emprego de ninguém.
O racismo que se verifica em tantos países europeus tem razões mais antigas do que o desemprego. A direita explora, naturalmente, a ideia de que os imigrantes tiram postos de trabalho dos brancos.
Mas, se os brancos não querem aqueles postos de trabalho mais rudes e com salários baixos, não importa. O racista vê nisso mais um motivo para desprezar os africanos, os turcos, os brasileiros que os aceitam.
Mesmo que um ou outro médico brasileiro perca seu posto numa cidadezinha perdida no sertão, há, pelo que sei, falta de médicos, e não de empregos. Tanto que o médico da cidadezinha tem outros.
Além de médicos, o fato é que eles são negros. E além de negros são cubanos. Não fizeram o tal exame de revalidação do diploma que possuem? Mas estão abrindo clínica especializada em neurocirurgia ao lado do Sírio-Libanês? Vão concorrer com os especialistas em plástica facial?
A televisão mostrou a entrevista de um representante de não sei que entidade médica brasileira, afirmando que os tais cubanos mal saberiam realizar um exame de ecocardiograma.
O caso é sério. Imagine se eles danificam, sem querer, todos os aparelhos de ressonância magnética de Primeiro Mundo que os esperam no sertão piauiense...
Que emprego, então, está em jogo? Ou o temor é de que sejam militantes socialistas a mando de Castro? Se forem, quem sabe se convertem à liberdade brasileira...
Talvez nosso sistema de vida, nessas áreas miseráveis, não convença tanto assim. Estarão os cubanos pondo o dedo numa ferida --o da consciência da classe média alta brasileira?
Curiosamente, os que protestam contra os cubanos assumem uma retórica sindical: lutam pelos salários dos outros. É um piquete, então? Pode ser. Nessas vastidões sem médico nenhum, a greve nos serviços de saúde dura bem uns quatro séculos.
Sozinhos não resolvem? É preciso mais que alguns médicos? Sim. Espero que, de lá onde vão clinicar, façam um protesto melhor do que o que andamos vendo por aqui.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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