O atual governo transitório do Egito quer convencer o mundo de que a destituição do presidente Mohamed Mursi e os sangrentos episódios subsequentes são apenas a correção dos rumos da "revolução de 25 de janeiro de 2011", a chamada Primavera Árabe.
O corpo diplomático daquele país iniciou uma campanha mundial para vender essa ilusão. No dia 25 de agosto, o embaixador egípcio no Brasil publicou na própria Folha um artigo ("O que os brasileiros devem saber sobre o Egito"). Teores idênticos foram divulgados simultaneamente por embaixadores em outros países, como Estados Unidos e Inglaterra.
Acredito que o leitor da Folha mereça esclarecimentos sobre o que, de fato, se passa, para entender o drama dos egípcios hoje.
Inicialmente, resisti à ideia de um golpe militar no Egito, apoiando-me em declarações dos militares e em agendas das forças organizadas que destituíram Mursi do poder. Tais agendas indicavam os passos da transição, começando por uma nova Constituição que colocaria o Parlamento como o Poder máximo Legislativo, inclusive acima do Conselho Superior das Forças Armadas (a Junta Militar). O segundo passo, a eleição direta do Parlamento e, finalmente, a eleição direta do futuro presidente, com poder superior inclusive ao da Junta Militar.
A sangrenta matança de centenas de apoiadores de Mursi me leva agora a reconsiderar a minha avaliação.
Sabe-se que vários governantes, no Oriente e no Ocidente, não aceitaram, e continuam não aceitando, a chegada de partidos islâmicos ao poder. A classe média egípcia também não. Os militares, conscientes disso, colaboraram efetivamente na destituição de Mursi, principalmente quando perceberam que a classe média egípcia começava a sentir "saudade" da era Mubarak.
O interesse dos militares de retornar ao poder os levou a elaborar um plano cuidadoso, inclusive para convencer a sociedade egípcia de que as Forças Armadas seriam a única opção para salvar o país. Para tal, usaram a tática de desgastar Mursi, nos seus 12 meses de governo, boicotando os planos para desenvolver o país, uma vez que mais de 40% da economia egípcia está nas mãos dos próprios militares.
No dia seguinte à deposição de Mursi, o milagre: os serviços públicos e de abastecimento de gás de cozinha, gasolina, energia elétrica e transportes tornaram-se uma maravilha. A fragilidade do governo Mursi, sua inexperiência e inabilidade política acabaram por ajudar o projeto dos militares. A classe média, avessa à Irmandade Muçulmana, diante do caos socioeconômico instalado, acabou apoiando a ação sangrenta do exército.
A real intenção dos militares pode ser resgatada na fala do general Omar Suleiman no dia 24 de maio de 2012, durante a campanha eleitoral que elegeu Mursi: "Se a Irmandade Muçulmana chegar ao poder, o país sofrerá um golpe militar".
Os militares programaram a primeira fase de um plano político "maquiavélico". Hoje, uma parte razoável do povo egípcio agradece a eles por depor Mursi e colocar o país na "trilha do alívio". A segunda fase é atuar em diferentes frentes, internas e externas, e lançar à Presidência um militar que poderia ser o atual ministro-chefe das Forças Armadas, Abdel Fattah al Sissi, responsável pela operação militar contra os apoiadores de Mursi.
Numa campanha intensiva, está sendo associada a Irmandade Muçulmana ao terrorismo e criada imagem positiva dos militares e Sissi. Mubarak e seus parceiros saíram das cadeias para prisão domiciliar, enquanto centenas de lideranças da Irmandade e Mursi estão nas prisões.
Nos próximos meses, os militares tentarão aprovar emendas constitucionais como a que permite que militares se candidatem, unir forças conservadoras e rever as condenações contra Mubarak, ganhar confiança internacional e eleger apoiadores no Parlamento e o novo presidente de forma esmagadora.
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