Peça usa 18 carros e recria caos viário
Dentro de uma vila, Grupo XIX encena situações de um congestionamento a partir de conto de Julio Cortázar
Cada carro é ocupado por três espectadores na criação em parceria com a Compagnia del Teatro Dell'Argine
A última coisa que "Estrada do Sul" pode oferecer a seu espectador é uma experiência singular, a não ser que haja alguém em São Paulo, um índio ou um esquimó talvez, que nunca tenha estado na situação que o espetáculo reproduz, um engarrafamento elevado ao nível do absurdo.
De qualquer forma, para chegar à Vila Maria Zélia, onde a montagem é encenada, na zona leste, é preciso passar pelo risco de experimentar um tira-gosto. O trajeto até lá passa pela marginal, pela Radial Leste ou pela avenida Celso Garcia, exceto para quem mora na vizinhança.
O local escolhido para a encenação, que usa 18 automóveis, fica em uma ruela nos fundos da vila, tombada desde os anos 1990 por seu valor histórico. Ali, em um galpão, também funciona a sede do Grupo XIX, que habita aquelas cercanias com seus espetáculos itinerantes desde 2004, quando criaram o projeto da peça "Hygiene".
Cada carro de "Estrada do Sul" recebe três espectadores. Adaptado do conto "A Autoestrada do Sul", de Julio Cortázar, o espetáculo vai acontecer dentro e fora dos automóveis, com momentos que se deslocam entre o "olho no olho" com atores até as paisagens insólitas construídas por cima de capôs.
Segundo Luiz Fernando Marques, um dos fundadores do XIX, potencializa-se nos cerca de cem minutos de encenação uma pesquisa fundamental da companhia: ninguém vai ver o mesmo espetáculo, ninguém vai testemunhar os mesmo diálogos.
PEGA LADRÃO
Em um ensaio que o grupo abriu à Folha na última sexta, era possível encontrar cenas espalhadas por todos os lugares, com intersecções entre elas: assiste-se a uma briga à frente do automóvel e simultaneamente há a imagem de um casal conversando, espelhada pelo retrovisor.
O espectador estabelece recortes, portanto, assumindo quase o papel de um investigador. Há, aliás, um roubo temperando a trama, com diversos suspeitos. As pistas são jogadas por entre diálogos e monólogos, com resultado frustrante: sabe-se lá o que o espectador do carro vizinho também ouviu.
"As relações dentro dos carros ficam no campo pessoal e íntimo; nas cenas externas, estão mais em evidência as questões políticas", analisa Marques.
Não há, neste recorte, fidelidade total ao conto de Cortázar, a não ser pelo agravamento das situações. Os mantimentos e a água escasseiam-se, estabelecendo novos conflitos. O tempo demora a passar na mesma medida em que a permanência da situação se prorroga.
O espetáculo foi concebido em parceria com a italiana Compagnia del Teatro Dell'Argine, com direção e dramaturgia de Pietro Floridia, que já trabalhou em países como Bolívia, Marrocos, Senegal, Palestina e Líbano.
O que uniu os dois grupos foi a proximidade de suas metodologias, a investigação sobre itinerância, o uso de espaços não convencionais. A dramaturgia é amarrada por Floridia a partir de depoimentos e improvisos dos atores.
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