sábado, 7 de setembro de 2013

Nova geração de seita judaica luta para proteger seu lugar em Israel

Os homens e meninos ofereceram suas orações num canto a plenos pulmões, levantando os braços em súplica e prostrando-se, descalços, sobre tapete vermelho felpudo que cobria o chão da sinagoga. Muitas das mulheres fizeram o mesmo numa varanda acima. Lá fora, no quintal, Shuki Cohen, o açougueiro local, grelhava montanhas de espetos de frango e aromáticos kebabs de cordeiro para uma festa popular em mesas longas dispostas no salão adjacente.
Na sede do judaísmo caraíta nesta cidade a sudeste de Tel Aviv, as festividades recentes estavam em plenos preparativos para a lua nova e a data que o calendário do movimento diz ser o começo do mês hebraico de Elul. O problema, de acordo com o calendário hebraico oficial de Israel, é que a celebração estava duas noites atrasada.
Isso significa que, enquanto a maioria dos israelenses começou a celebrar o Rosh Hashaná no pôr do sol de quarta-feira, os judeus caraítas só começariam o Ano Novo judaico no sábado – outro exemplo do desafio que esta antiga seita enfrenta ao defender suas tradições num estado onde o judaísmo é dominado pelos ortodoxos.
Para os caraítas, que se separaram do judaísmo rabínico há mais de mil anos, estar alguns dias fora de sincronia é uma marca de alteridade. Embora a maioria dos israelenses saiba pouco sobre eles, além de dizer que eles oram "como muçulmanos", os caraítas dizem que as autoridades ortodoxas – seu inimigo centenário – têm tentado vencê-los pelo cansaço numa tentativa de cooptá-los para o judaísmo rabínico.
Mas uma nova geração de líderes caraítas retomou a luta para ancorar seu lugar no Israel moderno.
"Eu vejo uma comunidade determinada a preservar seus costumes, ao contrário de outras comunidades", disse Neria Haroé, 30, advogado que é presidente da comunidade caraíta. "Temos uma longa história de lealdade para com a nossa tradição, e nós não queremos mudar isso."
Ele acrescentou: "vemos os rabínicos como aqueles que desviaram os judeus do caminho certo", referindo-se aos judeus rabínicos no comando das entidades religiosas do Estado, como o rabinato chefe.
Os caraítas derivam suas leis do que está escrito na Bíblia hebraica, rejeitando a natureza vinculativa da lei oral do Talmud, as interpretações rabínicas que vieram mais tarde e guiam a principal corrente do judaísmo. Afirma-se que o cisma se originou entre os judeus de Bagdá há cerca de 1.200 anos. Alguns traçam as origens ainda mais longe até as primeiras seitas do período do Segundo Templo, como os saduceus.
Os caraítas e os ortodoxos discordam em muitas questões, entre elas, quais datas celebrar. As mulheres caraítas também têm um status mais igualitário do que na ortodoxia rabínica. Como os judeus conservadores e reformistas, os caraítas não aderem à proibição estritamente ortodoxa contra ouvir uma mulher cantar. Casais caraítas assinam um contrato de matrimônio, e a mulher pode se divorciar mesmo contra a vontade do marido.
Mas ao contrário do advento das correntes mais igualitárias de reformistas e conservadores, populares entre os judeus norte-americanos, diz Heroeh, "nós sempre fomos assim".
O número de judeus caraítas em Israel é difícil de avaliar porque nenhum censo foi feito. Os caraítas dizer que é proibido contar os judeus, citando um versículo do Gênesis 32: "Certamente te farei o bem, e farei tua descendência como a areia do mar, que não pode ser contada por ser tão numerosa."
Em geral, entretanto, a comunidade é estimada em 30 mil a 50 mil, entre a população de oito milhões de Israel. Há também pequenas comunidades nos Estados Unidos, Turquia e Europa. A maioria chegou a Israel vinda do Egito em três ondas, a partir de 1948, quando o estado foi fundado, e 1970. Muitos vivem em Ramla ou na cidade mediterrânea portuária de Ashdod. Outros vivem em concentrações menores espalhadas pelo país.
A comunidade está passando por um renascimento. Dezenas de crianças caraítas participaram de um acampamento de verão aqui em agosto. Eli Eltachan, vice-presidente da comunidade e gerente da Ericsson,l disse que os jovens, profissionais formados agora em papéis de liderança, trouxeram "um novo espírito".
Shoshanna Eliahu, da cidade de Rehovot, participou da festa de Elul. Ela nasceu em 1956, quando seus pais se mudavam do Egito para Israel. Seu filho, Elior, 18, que usa um brinco de diamante na orelha, foi ao festejo para receber a bênção do rabino porque estava prestes a ser convocado para o serviço militar.
O vice-rabino de Ramla, Maor Dabbah, 25, fez um sermão sobre a importância da felicidade. Ostentando um corte de cabelo da moda, ele pediu para as pessoas comprarem uma coleção ilustrada de canções e bênçãos para a família, recém-publicada, que inclui um disco gravado pelo coro caraíta.
Mas em meio a essa nova energia, alguns rabinos têm questionado o judaísmo dos caraítas.
No judaísmo caraíta não há Hanukkah, porque esse festival não é mencionado na Bíblia. Os meses hebraicos transcorrem estritamente de acordo com o ciclo lunar e não podem ser alterados, como no judaísmo rabínico, por uma questão de conveniência. As regras da dieta caraíta diferem daquelas da principal corrente do judaísmo, e embora a linha matriarcal de descendência geralmente determine quem é judeu, a linhagem caraíta é patriarcal. "Está escrito na Torá que Abraão gerou Isaac", disse Ovadiah Murad, rabino da antiga sinagoga caraíta na Cidade Velha de Jerusalém.
Os caraítas administram seu próprio tribunal religioso e fazem seus próprios casamentos e divórcios, que são registrados no Ministério do Interior. A comunidade recebe um orçamento estatal e emprega seus próprios rabinos, açougueiros religiosos e prestadores de outros serviços como enterros. Mas como o status da comunidade nunca foi formalizado pela lei israelense, ela permanece vulnerável.
Dois anos atrás, inspetores do rabinato chefe visitaram o açougue de Cohen e o multaram por exibir um cartaz declarando sua carne como "kosher". Eles disseram que era enganoso, embora o sinal especificasse que a loja estava sob supervisão caraíta.
A comunidade levou o caso ao Tribunal de Magistrados Ramla e venceu. O juiz disse que multar a loja teria constituído uma mudança abrupta de política.
Mais recentemente, quando o rabinato chefe parou de emitir os documentos que os casais caraíta necessitavam para confirmar seus casamentos e divórcios no exterior, a comunidade fez uma petição ao Supremo Tribunal Federal. O rabino Eli Ben- Dahan, vice-ministro de cultos religiosos, disse numa entrevista que a emissão de certidões de casamento foi resolvida desde então, mas que reconhecer os divórcios caraítas é mais complicado.
O reconhecimento legal enquanto uma comunidade religiosa distinta, segundo ele, é problemático. "Eles dizem que são judeus, e de acordo com a nossa lei religiosa, são judeus", diz ele. "Mas eles não podem ser judeus especiais."
David Yefet Yerushalmi, 58, um caraíta que se aposentou na carreira militar e vive na aldeia de Mazliach, perto de Ramla, disse que as autoridades rabínicas não poderão jamais sancionar totalmente o judaísmo caraíta. "Isso", diz ele, "significaria que eles estavam errados."

Reportagem de Isabel Kershner, para o The New York Times, reproduzida no UOL. Tradutor: Eloise De Vylder

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