Num tempo em que o Brasil ainda não era grande coisa, digamos no começo da década de 1980, um amigo especialista em relações internacionais tentava me curar do complexo de vira-lata.
Ele conhecia razoavelmente os bastidores da ONU. Garantiu-me que, por lá, as posições tomadas pelo Itamaraty eram levadas em consideração, e que nosso país não era visto como uma republiqueta.
"Você não sabe", dizia o amigo, "o que o embaixador americano na ONU faz com os representantes dos países da América Central". Chama-os para seu gabinete e, segundo se comenta, "as cenas ali são proibidas para menores de 18 anos".
Chantagem? Corrupção? Ameaça física? Sexo forçado? Interlocutor discreto, o amigo nada mais me adiantou, e de todo modo minha curiosidade não ia tão longe.
Respirei aliviado, concluindo que, à falta de maiores ativos econômicos e políticos, o Brasil pelo menos contava com grande contingente populacional e com a sempre enaltecida extensão de seu território.
A ideia de que o poder pudesse exercer-se tão cruamente ficou na minha cabeça, mas não cheguei a ler livros de história capazes de dar bons exemplos gráficos desse tipo de coisa. Mesmo no cinema, a violência das ruas supera em muito o que possa acontecer nos gabinetes.
O mais interessante de "Jobs", filme de Joshua Stern sobre o criador da Apple, está no que consegue mostrar da pura brutalidade, verbal e moral, que parece prevalecer no mundo corporativo.
Não tenho nenhum fetiche por iPods, iPads, iPhones e outras coisas parecidas; para mim são todos bastante iguais, aliás, e qualquer admiração que eu possa ter pelo inventor desses badulaques já fica relativizada com a constatação de que, pelo menos em matéria de nomes de produtos, a criatividade de Steve Jobs não é das mais ofuscantes.
A julgar pelo filme, ele era antes de tudo um monstro. Desde sua entrada no mundo da informática, desenvolvendo aqueles joguinhos primitivos de Atari, Steve Jobs grita, humilha, apunhala e pisoteia quem passa pela sua frente.
Sua primeira negociação, com o proprietário de uma lojinha de acessórios eletrônicos, já se apresenta como duvidosa, para dizer o mínimo. Jobs mente, ou blefa, a respeito de suas possibilidades como fornecedor de um novo tipo de aparelho --no qual, mente de novo, inúmeras outras lojas estavam interessadas.
O aparelho, claro, é um modelo de computador que se pode usar dentro de casa, acoplado à tela de TV. A genialidade técnica da invenção não proveio de sua mente autocentrada, cujo caráter visionário e persistente se confunde com os defeitos do açodamento e da cegueira.
Ele percebeu que o mundo poderia ser outro, se surgisse alguém capaz de saber o que o consumidor deseja, antes mesmo que esse desejo fosse percebido.
O preço a pagar durante o caminho é de não ver mais nada, nem ninguém, entre o primeiro passo e o objetivo final. Jobs ignora tudo --até a namorada grávida e depois a própria filha-- em favor desses aparelhos que, por sua vez, tanto nos ajudam a conhecer e a ignorar o mundo.
Isso seria o de menos, não fosse a presença de outros humanoides tão determinados e impiedosos quanto ele. São os que terminam por destituí-lo da própria empresa. Jobs só era suportável se desse lucros aos acionistas; mas sabemos de que modo as novas tecnologias têm o poder de emperrar e não dar certo.
Quando ele volta para a Apple, supostamente mais humano e sábio, o espectador já está farto de torcer por um sujeito tão detestável. O próprio Jobs se deixa amolecer, e os produtos da empresa começam a ganhar a aparência que têm hoje.
O jovem designer lhe mostra o protótipo de um computador arredondado e branco, de onde brotam, como num bufê infantil, balões transparentes de cor. Jobs aprova, recorrendo novamente à retórica de uma tecnologia humanizada e doce.
Mas o que havia de revolucionário no uso caseiro de computadores não se confunde com a cosmética de um novo produto, ou com sucessivas versões de um brinquedo básico.
Depois de nos convencer da antipatia fundamental do protagonista, o filme muda de foco. Jobs não importa mais; sequer sua mensagem merece atenção. Não é preciso elogiar o inventor; o filme só quer que gostemos da marca que ele criou. Jobs seria o primeiro a aprovar esse ponto de vista.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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