Repressão aos partidários de Mursi extrapola o Cairo
Mesmo no interior do Egito, islamitas são perseguidos
Por MAYY EL SHEIKH
AGA, Egito - O corpo de Rami Abdel Aal foi cuidadosamente lavado e envolto numa mortalha branca, tudo de acordo com os preceitos islâmicos sobre os preparativos de cadáveres para o enterro.
Mas a tradição parou por aí.
Nesta localidade rural no Delta do Nilo, é habitual que a comunidade acompanhe a família do morto nos cortejos fúnebres. Mas Abdel Aal foi xingado -alguém o chamou de cão, outro de infiel. Uma família celebrou um casamento na mesma hora, algo inaudito.
A convulsão que sacode o Egito foi além das grandes cidades. Mesmo no interior, a crise política está rasgando as comunidades. Abdel Aal era um dirigente local da Irmandade Muçulmana. Estava entre as centenas de pessoas mortas em agosto por militares numa praça do bairro cairota de Rabaa, que estava ocupada por partidários do presidente deposto Mohamed Mursi.
Desde então, o governo instalado pelos militares e a máquina estatal, incluindo a mídia, vilipendiam os partidários de Mursi, tratando-os como traidores e terroristas. Abdel Aal era um médico de 28 anos, pai de dois filhos, que passou a vida toda morando em Aga, mas isso não teve importância para seus vizinhos quando o corpo foi trazido de volta para o sepultamento.
Após prepararem o corpo dele, os funcionários da mesquita apagaram as luzes e desligaram o microfone, temendo a retaliação dos moradores se estes soubessem que ali ocorria o funeral de um ativista islâmico.
"Somos estrangeiros no nosso próprio país", disse Hossam Farahat, seguidor da Irmandade em Aga.
"Não sei como a vida no Egito poderá continuar desse jeito."
Dois meses depois de o general Abdel Fatah al-Sisi declarar que estava retirando Mursi da Presidência, as cenas da vida na aldeia sugerem que as divisões só se aprofundaram. Os partidários de Sisi chamam seus vizinhos religiosos de "ovelhas", por sua suposta obediência aos seus líderes, enquanto os religiosos reagem gritando que os apoiadores dos militares são "escravos" e "lambe-botas do Exército".
"Alguma coisa aqui na comunidade quebrou", disse Ahmed Yassein, líder do partido Al Dostor (liberal, mas pró-militares) em Mansoura, a capital provincial, perto de Aga. "E nunca haverá uma cura total."
Em Mansoura e em outras cidades do Delta do Nilo, os protestos contra a tomada do poder pelos militares motivaram confrontos mortais. Quando milhares de ativistas islâmicos saíram pelas ruas de Mansoura, em meados de julho, outros moradores os atacaram com facões, porretes e pistolas, matando quatro mulheres.
Muitos estabelecimentos de Aga sabidamente pertencentes a membros da Irmandade, incluindo farmácias, foram saqueados. "Sei que o que estão fazendo com os islamitas é errado", disse Hassan Habeeb, funcionário local do movimento esquerdista pró-militares Al Tayar al Shaaby. "Mas ainda sou totalmente a favor, porque é necessário e porque eles não teriam demonstrado misericórdia por nós se os papéis estivessem invertidos."
O pai de Abdel Aal foi detido na ocupação de Rabaa. Parentes e amigos, incluindo Farahat, passaram dias à procura dele.
O homem foi finalmente encontrado na prisão de Abo Zaabal, onde pelo menos 37 ativistas islâmicos sob custódia foram mortos por policiais que os acusaram de tentar fugir.
"As ruas não estão seguras, nossos negócios não estão seguros e nem as prisões estão seguras para nós", disse Farahat. "O único lugar seguro para nós no Egito atualmente é a sepultura."
Reprodução de notícia do The New York Times, na Folha de São Paulo.
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