Piglia viu a América
O novo romance do escritor argentino
RESUMO Após 15 anos como professor nas universidades Princeton e Harvard, autor de "Respiração Artificial" (1980) lança "El Camino de Ida", baseado na vida nos campi americanos. Radicado novamente em Buenos Aires, escritor acredita que a polarização política em seu país tenha engolido lamentavelmente o debate cultural.
É hora do almoço no agitado café da Biblioteca Nacional de Buenos Aires, instituição histórica construída no local onde algum dia esteve a residência do general Juan Domingo Perón (1895-1974) e que foi dirigida por ninguém menos que o escritor Jorge Luis Borges (1899-1986). Lá o escritor argentino Ricardo Piglia, 71, espera pela reportagem da Folha.
Cartão-postal da capital portenha e emblema da história política e cultural da cidade no século 20, a biblioteca hoje se transformou numa trincheira dos intelectuais que defendem o controverso governo da presidente Cristina Kirchner.
Realizar algo ali ou mesmo ser visto na companhia de seus diretores é assinar o recibo de uma determinada filiação ideológica. Reúnem-se ali acadêmicos e escritores que compram a ideia de que Cristina encarna o progressismo dos anos 70, quando a militância e as guerrilhas de esquerda enfrentavam a ditadura militar (1976-83).
Piglia, porém, não teme ser rotulado ou identificado com essa bandeira. Caso raro de intelectual argentino que não tomou posição definida entre o kirchnerismo e o antikirchnerismo, o escritor vê aspectos positivos na atual gestão, mas critica duramente outros.
Exemplo disso é o que o leva a estar ali nesta sexta-feira de inverno: gravar um dos quatro capítulos de uma minissérie documental sobre Borges para o Canal 7, a televisão pública argentina.
Explica-se: para o mundo artístico e intelectual argentino, trata-se de uma contradição, ou ao menos de um claro dilema ideológico. Afinal, o autor do "Aleph" é considerado um inimigo da esquerda e do peronismo, por ter ficado ao lado dos militares durante o golpe.
Propor e realizar um programa sobre Borges para o canal do Estado, tomado pelo discurso populista de esquerda oficial nesses tempos de kirchnerismo é, portanto, um desafio. Piglia, que conheceu Borges quando tinha 18 anos e o encontrava para conversas sobre literatura, vê o programa --que atualmente está no ar-- como "algo necessário".
"Essa polarização extrema que vemos hoje na sociedade, os que são contra e a favor do governo, está ganhando contornos muito violentos. Mas não deveria invadir a cultura. A cultura não é pró nem contra um projeto político, ou pelo menos não é só isso. É algo que vai muito além, que deixa um legado, e é esse aspecto que quero explorar de Borges hoje. O que ele deixou? Qual é a sua atualidade?".
Piglia conta que o projeto o animou por reaproximá-lo das questões argentinas. Nada melhor para alguém que passou os últimos 15 anos dando aulas nas universidades de Princeton e em Harvard, passando na capital argentina apenas alguns meses por ano.
IDA
A experiência norte-americana é uma das principais fontes de inspiração para "El Camino de Ida" (O Caminho de Ida), seu mais recente romance, que acaba de ser lançado na Argentina e na Espanha e que chegará ao Brasil no primeiro semestre de 2014, pela Companhia das Letras.
O novo romance traz de volta o "alter ego" de Piglia, Emilio Renzi, que aparece em outros livros mas que, desta vez, encarna um acadêmico argentino convidado a dar aulas numa universidade norte-americana e que se apaixona por uma típica professora universitária local, chamada Ida Brown.
O ambiente dos campi dos EUA já havia aparecido na série de diários que o autor manteve durante o período e que vem publicando aos poucos agora --parte deles saiu na "Ilustríssima" no ano de 2011.
"São coisas diferentes, apesar de a matéria-prima ser a mesma. Nos diários vinha muito de minha reflexão sobre os temas que surgiam durante a experiência acadêmica. Aqui está mais bem retratado o ambiente das discussões, o lado humano daqueles que as protagonizam", diz.
O novo livro põe em exame a violência --não só pelos questionamentos que propõe acerca de como ela ocorre nos Estados Unidos mas também pelo que deixa entrever sobre sua presença na Argentina nas últimas décadas.
Um dos personagens mais interessantes é Munk, inspirado amplamente no Unabomber --apelido do matemático e terrorista norte-americano Theodore Kaczynski, condenado à prisão perpétua por atentados que mataram três pessoas e feriram mais de 20.
"Trata-se de uma figura fascinante, pelo ambiente do qual saiu, suas referências intelectuais, a cultura que o produziu. A política ajuda a canalizar a violência das sociedades. E o Unabomber é uma típica produção americana", diz.
Para Piglia, os Estados Unidos são um país violentíssimo, mas que se recusa a fazer uma interpretação política dos atos de violência, aparentemente inexplicáveis, que lá se desenrolam.
"Na Argentina, se um trabalhador é demitido, vai a um sindicato. Nos Estados Unidos, vai para casa, enlouquece, sai atirando. Aí o fenômeno é tratado do ponto de vista psíquico; mas não: é político."
E acrescenta, brincando, que o que falta hoje aos Estados Unidos é um pouco de peronismo. A ideologia nacionalista, tão enraizada na Argentina, teria levado a violência para o nível do debate político em seu país, coisa que nos EUA não acontece, produzindo outras formas e algumas catástrofes.
"El Camino de Ida" segue uma linha adotada por Piglia desde "Respiração Artificial" (1980). Seus romances armam um intenso diálogo com a tradição literária argentina e com as leituras de juventude do autor.
Nele comparece o eterno conflito entre "civilização" e "barbárie", analisado por Domingo Faustino Sarmiento (1811-88) e transformado em referência para o debate sobre colonialismo e modernidade na América Latina.
Aqui, o conflito surge da dualidade entre as origens do protagonista, que é do interior da província de Buenos Aires, como o próprio Piglia (nascido em Adrogué), e o novo terreno em que pisa, o país mais poderoso do planeta. Dicotomia semelhante já havia pautado "Alvo Noturno" (2011), no qual um crime numa cidade interiorana argentina era investigado por um detetive vindo da capital.
Piglia afirma que "esse diálogo existirá sempre". "É o nó central da nossa cultura, a questão que distingue nossa identidade."
O romance, porém, bebe ainda da imersão na cultura norte-americana propiciada pela longa temporada do autor no país.
Assim, entre as fontes de Piglia, estão tanto expoentes do grande romance americano, como Henry James e William Faulkner, quanto a tradição de cultura popular que vai da geração beat, passa pelo jazz e desemboca nas minisséries televisivas. O escritor diz ser fã dos seriados e defende que sejam vistos com status literário, comparando-os aos romances de folhetim comuns no século 19.
DEBATE
Apesar de manter uma posição equilibrada com relação à política, Piglia não deixa de ver com preocupação o clima aquecido pelo debate eleitoral --a Argentina passa por um processo de eleições legislativas, que pode definir os rumos do kirchnerismo.
"A questão da sucessão começa a tomar forma e não sabemos o que vai acontecer. O peronismo tem uma espécie de ferramenta que não permite a criação de um sucessor. Perón não permitiu sucessor; ele era a pessoa mais importante, o grande líder e intelectual do regime, não podia haver espaço para mais ninguém. Está acontecendo o mesmo agora, com Cristina."
Dependendo do apoio que o kirchnerismo tiver no novo Congresso que se desenha, é possível que o partido da presidente apresente a hipótese da re-reeleição, para a qual teria de haver uma mudança na Constituição do país. De outro modo, Cristina teria de escolher um sucessor para apoiar --alternativa que, na opinião do escritor, é "muito difícil". "Ela não consegue delegar e ceder lugar a outra figura", opina.
O escritor vê, ainda, uma degradação do jornalismo argentino. Na sua opinião, desapareceram do debate questões sociais e culturais, engolfadas na polarização pró ou antikirchnerista. "É triste ver que tantos nomes se consomem na disputa política, que os intelectuais públicos hoje são os jornalistas, porque os outros se calam. A discussão ficou muito rasa."
O kirchnerismo, desde 2008, tem apontado suas armas contra a imprensa independente, buscando tirar poder de jornais como o "Clarín" e o "La Nación". Por sua vez, esses reagem, com ataques muito duros ao governo. O embate ficou conhecido nos meios como "batalha cultural", por conta do termo bélico usado pelo governo em sua campanha.
Aposentado da vida universitária, o escritor se vê com mais tempo livre para escrever. "Sinto que estou numa fase muito produtiva. E estar direto em Buenos Aires ajuda muito." Entre seus próximos projetos, está a edição dos diários, participação em projetos editoriais e de televisão e, evidentemente, um novo romance.
Reprodução da Folha de São Paulo.
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