sábado, 14 de setembro de 2013

Embargos infringentes e interpretação sem limites

– Tudo é relativo – diz um velho grego.
– Isso é absoluto – responde um grego um pouco mais novo.
– A verdade depende do ponto de vista – diz um antigo.
– Então só essa verdade não depende de ponto de vista – responde um antigo um pouco mais moderno e sinuoso.
– A comunicação é impossível. Cada um recebe e interpreta a mensagem do seu jeito – afirma um pós-moderno.
– Concordo plenamente – retruca o interlocutor moderno.
– Tudo é interpretação – assegura um jurista renovador.
– Até isso? – pergunta o leigo.
Penso tudo isso quando paro para acompanhar pendengas jurídicas como essas dos embargos infringentes. O STF adotou dois pesos: o mensalão do PT foi julgado inteiramente por ele deixando os réus sem direito a recurso, o chamado duplo grau de jurisdição. O mensalão do PSDB recebeu tratamento diferente. Por quê? Por opção ideológica? Não sei. O antipetista já salta: “Defendendo os mensaleiros, hein!”. Quero mensaleiros em cana. De todos os partidos. E julgados com os mesmos critérios, teorias e procedimentos. Tudo se tornou ideológico nessa querela. O cara que vibrava com cada voto contrário aos embargos infringentes o fazia por querer ver os petistas na cadeia. O sujeito que torcia pelo contrário tampouco agia por equilíbrio, mas por querer livrar petistas da cana. O jogo de cena tem nome: combate ideológico.
A questão é: não é possível escrever normas claras e não sujeitas a interpretações? Por exemplo: sempre que o resultado de um julgamento for por determinado placar caberão embargos infringentes? Bem, dirá alguém, talvez até se possa fazer isso, mas para o caso essa norma tão clara e inequívoca não existe. Daí a necessidade de votação no STF. A imagem passada pelo Supremo e pelos torcedores é que a Constituição e os códigos são meras referências. Constitucional ou legal não é o que está no texto, mas o que os ministros do STF decidem que é, mesmo que não exista a menor referência escrita sobre isso. A interpretação tem limites. Ministros do STF podem dizer muito sobre a Constituição, mas não tudo. Umberto Eco já ensinou tudo sobre esses limites: muitas interpretações são possíveis, não todas. A interpretação decorre da polissemia de um texto, não do arbítrio do intérprete.
– Mas o que é melhor para a sociedade? – pergunta ardilosamente quem tem este ou aquele interesse.
Melhor para a sociedade é seguir aquilo que está na lei. E, se a lei for ruim, tratar de mudá-la. O chamado ativismo jurídico defende a superinterpretação: o judiciário legislando para preencher lacunas e superar o conservadorismo do legislativo em certas questões. Parece mais moderno. Não é o melhor caminho. O bom caminho é o parlamentar, pressionado pelos eleitores, refazer as leis. Ou se consultar diretamente a população para que ela estabeleça seus parâmetros legais. O judiciário deve zelar pelas regras aprovadas pelo legislativo ou por consulta popular. O resto é sobreposição e usurpação.
O ministro Celso de Mello, que desempatará a votação, terminada em 5 a 5 na última sessão do STF, está preso pela palavra. Em 2 de agosto de 2012, durante sessão do julgamento da ação 470, ele disse em resposta a advogados que reclamavam de que seus clientes não teriam grau de recurso: A garantia da proteção judicial efetiva acha-se assegurada, nos processos penais originários instaurados perante o Supremo Tribunal Federal (…) pela possibilidade que o art. 333, inciso I, do RISTF [Regimento Interno do STF] enseja aos réus, sempre que o juízo de condenação penal apresentar-se majoritário. Refiro-me à previsão, nos processos penais originários instaurados perante o Supremo Tribunal Federal, de utilização dos ‘embargos infringentes, privativos do réu, porque somente oponíveis a decisão ‘não unânime’ do Plenário que tenha julgado ‘procedente a ação penal”.
Celso de Mello rebateu na ocasião a tese de que a lei 8.038/90 sepultou os embargos infringentes: Entendo, não obstante a superveniente edição da Lei nº 8.038/90, que ainda subsiste, com força de lei, a regra consubstanciada no art. 333, I, do RISTF [Regimento Interno do STF], plenamente compatível com a nova ordem ritual estabelecida para os processos penais originários instaurados perante o Supremo Tribunal Federal”.
O duplo grau de jurisdição é defendido como incontestável, sagrado mesmo, pela Convenção Americana dos Direitos Humanos (art. 8º, 2, “h”) e também pela jurisprudência da Corte Interamericana. A demagogia, o oportunismo e o ideologismo aparecem toda vez que se pede ao judiciário para desconsiderar algo que está na regra em nome de alguma satisfação imediata da mídia. Todo criminoso, por pior que seja, deve poder ter acesso a todos os recursos previstos em lei. Até os mensaleiros.

Outra reprodução do Blog do Juremir Machado da Silva

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