INTELIGÊNCIA/ALAA AL ASWANY
Viajando como um árabe
Cairo
Alguns anos atrás fui convidado para um festival literário em Londres cujo slogan era "mudar o mundo". Quando passei pelo processo normal de entrada no aeroporto de Heathrow, eu carregava alguns folhetos do festival. Mas, antes de chegar à saída, me surpreendi ao ser barrado por um policial. Ele examinou meu passaporte e os folhetos. Perguntou: "De que modo você quer mudar o mundo?"
A expressão dele era apreensiva, então levei a pergunta a sério e comecei a explicar, em palavras simples, que eu era escritor convidado ao festival, que eu não tinha escolhido o lema pessoalmente, mas que a frase deixava subentendido que tratava-se de usar a escrita para mudar o modo como as pessoas pensam. O policial pareceu convencido, mas, mesmo assim, pegou meu passaporte, e eu tive que esperar meia hora para que fosse devolvido.
Eu poderia contar dezenas de casos semelhantes. Minhas obras literárias foram traduzidas para 35 línguas; por essa razão, já viajei a muitos países para fazer seminários e sessões de autógrafos. Sou tratado amigavelmente por pessoas do mundo dos livros, mas em aeroportos eu sou apenas mais um árabe, um terrorista potencial.
Não me queixo das medidas de segurança, porque obviamente foram instituídas para minha proteção, como passageiro. A maioria dos funcionários de segurança cumpre seu papel de modo cortês e exemplar, mas alguns deles aproveitam os procedimentos para tratar você com escárnio ou fazê-lo entender que você é inferior ou não é bem-vindo.
A função dos funcionários das alfândegas em aeroportos é captar contrabandistas. Mas, se você tem aparência de árabe, se você é negro ou se é mulher e usa véu na cabeça, eles imediatamente voltam a atenção para você e lhe fazem uma série de perguntas provocantes que eu duvido que tenham qualquer coisa a ver com contrabando.
"Quantos pacotes de cigarros o senhor tem na mala?" perguntou uma agente antes de abrir minha mala. Respondi que tinha um. "Tem certeza?", ela insistiu.
Às vezes é um pouco demais para mim. Uma vez, no JFK, me detiveram por duas horas porque fiz objeções à atitude do policial. Em outra ocasião, em Nice, na França, um policial me chamou fazendo um gesto de "vem cá" com o dedo indicador, algo que achei uma falta de respeito. Ele examinou meu passaporte e então perguntou: "O que você está fazendo aqui?"
"Vim comprar algumas vacas", eu lhe disse em tom sério. O policial pareceu confuso. "Vacas? Mas em seu passaporte diz 'profissão: dentista'!"
"Existem alguns dentistas", expliquei (de fato, sou dentista por profissão) "cujo hobby é colecionar vacas. É o meu caso."
Ficamos ali, trocando olhares de soslaio, até que ele finalmente me devolveu o passaporte e me deixou seguir adiante.
Uma policial francesa de origem tunisiana, chamada Sihem Souid e que trabalhava no aeroporto de Orly, em Paris, fez objeção ao tratamento racista dado a passageiros árabes e africanos. Ela e sete de seus colegas prestaram queixa do comportamento de outros policiais, mas nada foi feito. Sihem então lançou um livro, "Omerta dans la police", que expôs as práticas racistas vigentes em Orly, incluindo o caso de uma africana que um policial descreveu como "negra suja" e que foi obrigada a tirar a roupa, revistada e fotografada, enquanto o policial assistia a tudo, rindo.
Por que alguns policiais dão esse tipo de tratamento racista a passageiros em aeroportos?
Clay Routledge, professor de psicologia na universidade North Dakota State, argumenta que algumas pessoas têm sede de controle e praticam a discriminação contra outras para saciar esse desejo e reforçar sua autoestima. Para outros, o racismo pode reforçar uma visão de mundo em preto e branco em que os brancos e cristãos "bons" enfrentam os negros e muçulmanos "maus". Em seu livro de 1981 "Covering Islam", o intelectual Edward W. Said disse que a mídia ocidental geralmente retrata os árabes e muçulmanos ou como xeques petrolíferos ou como prováveis terroristas, enquanto o próprio islã é representado como uma abstração incompreendida e indefinida.
É evidente que crimes bárbaros e apavorantes cometidos por terroristas em nome do islã lançaram uma sombra sobre a imagem de todos os muçulmanos. Mas a regra mais básica da justiça é que a responsabilidade criminal cabe ao indivíduo, e não "por associação" com um grupo que, por acaso, compartilha uma identidade religiosa ou étnica. Será que todos os americanos deveriam ser responsabilizados pela tortura de detentos iraquianos na prisão de Abu Ghraib?
Na realidade, o número de vítimas árabes e muçulmanas do terrorismo extremista islâmico supera de longe o de vítimas ocidentais. Apenas nos últimos dois anos, terroristas no Egito mataram mais de 400 policiais e soldados egípcios.
O cristianismo já teve suas fases de perseguição dos chamados hereges, seitas, judeus e muçulmanos, além de suas guerras religiosas, suas inquisições e cruzadas. Ao longo dos séculos, esses crimes foram cometidos em nome de uma religião que prega o amor e a tolerância. Nenhuma religião é mais sanguinária que outra ou exerce o monopólio do extremismo violento. Assim como o islã pode ser vivenciado como uma religião bondosa e que pede tolerância, ele pode ser distorcido para justificar o terrorismo.
Se queremos fazer deste mundo um lugar melhor para nossos filhos, precisamos ensinar a eles que, por mais diferentes sejamos em termos de cor, sexo, cultura ou religião, somos seres humanos que sentem, pensam e sofrem da mesma maneira. Precisamos deixar os preconceitos de lado e tratar uns aos outros com base na igualdade. Apenas assim um passageiro negro ou árabe em um aeroporto ocidental será tratado como qualquer outra pessoa.
Texto publicado no The New York Times, e reproduzido na Folha de São Paulo.
Alaa Al Aswany é autor do romance "O Edifício Yacoubian"e outros livros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário