Livro analisa revoluções de David Bowie
Estudo de Peter Doggett recém-lançado no Brasil mostra artista inglês como o mais ousado e visionário dos anos 70
Para autor, Camaleão do rock foi quem melhor soube capturar 'o caos e o senso de confusão' que marcaram a década
Um dos melhores livros sobre música pop dos últimos anos acaba de sair no Brasil: "O Homem que Vendeu o Mundo "" David Bowie e os Anos 70", do britânico Peter Doggett. Autor do excelente "A Batalha pela Alma dos Beatles", Doggett fez uma análise, música a música, de toda a obra de Bowie entre 1969 e 1980, e concluiu que, na década de 70, nenhum músico pop foi tão ousado e visionário quando ele.
"A obra de Bowie foi tão brilhante que sua relevância cultural só se tornou óbvia depois que a década terminou", disse Doggett à Folha.
"Foi uma década confusa e repleta de grandes acontecimentos, e os temas predominantes não eram facilmente detectáveis na época. Foi só depois que pudemos apreciar a capacidade genial de Bowie para capturar todos os temas e obsessões da era."
O autor afirma que o caráter "fragmentário" dos discos de Bowie, com estilos, sonoridades e temas diversos, também refletiu o "caos e o senso de confusão dos anos 70".
"Bowie parecia mudar totalmente a cada disco. Ele era incansável, obsessivo, desesperado para explorar tudo, descobrir tudo, experimentar tudo. Seu trabalho era fragmentário, incluindo a forma como utilizava a técnica de corte e cole' de William Burroughs para escrever letras [o poeta americano costumava recortar textos e rearranjá-los de forma aleatória]", diz.
"Acho que Bowie refletiu o caos dos anos 70 com mais imaginação do que qualquer outro artista, incluindo escritores, pintores ou cineastas."
Doggett diz que chamar Bowie de Camaleão, por suas constantes mudanças de estilo, virou um clichê, mas que "há muito mais em seu trabalho do que o mimetismo".
"Esse aspecto da carreira dele tem sido uma inspiração para outros artistas, como Madonna e Lady Gaga. O trabalho de Bowie é tão rico e eclético que você pode encontrar influência dele no punk, na discoteca, no gênero new romantic' e no grunge. É quase impossível para um artista contemporâneo não ser influenciado por Bowie."
A exemplo dos fãs do músico, Doggett também ficou surpreso quando, em 2013, Bowie, que parecia estar aposentado, lançou o LP "The Next Day". "Liguei o rádio e ouvi o locutor dizendo que David Bowie havia lançado uma nova canção. Fui para a internet, vi o clipe e continuei achando que estava sonhando! Achei o disco muito bom, mas não adiciona nada de novo à obra dele."
"Parece uma continuação de 'Scary Monsters (and Super Creeps)' [álbum de 1980]. Gosto de ouvir o disco, mas não preciso ouvi-lo, como acontecia com os discos dele nos anos 70."
Reprodução da Folha de São Paulo.
Obra usa Bowie como ponto de partida para a reflexão histórica
'O Homem que Vendeu o Mundo' analisa referências usadas pelo artista britânico para criar personagens
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em 1994, o crítico musical inglês Ian MacDonald lançou um clássico da literatura sobre música pop, "Revolution in the Head", em que analisava, canção a canção, toda a obra dos Beatles. Alguns anos depois, um editor pediu a MacDonald que escrevesse um volume no mesmo formato sobre a obra de David Bowie. Mas o livro nunca saiu. Em 2003, MacDonald cometeu suicídio, aos 54 anos.
O editor chamou então o jornalista Peter Doggett para escrever o livro. E Doggett cumpriu a tarefa de forma brilhante. Seu "O Homem que Vendeu o Mundo" é muito mais que uma análise da obra de um artista: é uma reflexão sobre os anos 70, usando a música de Bowie como ponto de partida.
Começando com "Space Oddity" (1969) e terminando com o LP "Scary Monsters (and Super Creeps)" (1980), o autor mostra como Bowie radiografou, de forma brilhante, a década do "eu".
Muita gente vê Bowie como um artista visionário, sempre interessado no futuro. Mas é surpreendente perceber quantas de suas canções são autobiográficas.
Bowie --ou melhor, David Jones-- cresceu na dilapidada Londres do pós-guerra, sofreu com a esquizofrenia de parte da família e viu parentes internados em manicômios e lobotomizados. Não é à toa que criou, em sua música, um mundo imaginário dos mais cinzas.
REFERÊNCIAS
A cada canção analisada, Doggett teoriza sobre as influências de Bowie: o "Super-Homem" de Nietzsche, o futurismo sombrio de Ray Bradbury, a distopia de "Laranja Mecânica" de Burgess, o ocultismo de Aleister Crowley.
Para criar seus personagens mais famosos --Ziggy Stardust, Aladdin Sane--, Bowie usou pedaços de Andy Warhol, Judy Garland, Vince Taylor, musicais da Broadway e astros de Hollywood. O livro traz incontáveis histórias e teorias sobre as músicas do Camaleão e revela os segredos de cada letra e as referências usadas pelo músico.
SOMBRIO
O traço mais marcante de Bowie talvez seja o ceticismo. Sua falta de sintonia com os ideais hippies dos anos 1960 --paz, amor e LSD-- era total.
Tanto que, meses antes de Woodstock, quando 500 mil pessoas celebraram a "era do amor livre", Bowie já gravara "Space Oddity", canção sombria em que não só antecipava a chegada do homem à Lua, mas dizia que a vida no espaço seria tão triste e melancólica quanto a terrena. Era, nas palavras do próprio Bowie, um "antídoto contra a febre espacial".
Nenhum comentário:
Postar um comentário