Da esperança ao medo
Garota vive odisseia após falsas promessas
Por DAMIEN CAVE e FRANCES ROBLES
EL PARAÍSO, Guatemala - Meses atrás, traficantes de pessoas colocaram um anúncio na rádio em que perguntavam: "Você quer viver melhor? Venha comigo". Cecilia, uma menina irrequieta, estava louca para ir.
Seu padrasto tinha sido assassinado, forçando sua família a ir morar no casebre de uma tia, com apenas três camas para dez pessoas. Era tudo o que tinham -e o que o traficante de pessoas exigia. Ele ofereceu um empréstimo de US$ 7.000 para a jornada de Cecilia, tomando o imóvel como garantia. "Eu lhe dei a escritura original", disse Jacinta, sua tia, observando que o traficante deu um ano para eles pagarem a dívida, com juros.
A viagem durou quase um mês e transformou-se em sequestro. A liberdade só veio depois de um pagamento de mais US$ 1.000, feito enquanto os sequestradores brandiam uma arma junto à menina.
Agora em Miami, Cecilia, 16, é uma entre os mais de 50 mil menores desacompanhados que em menos de um ano chegaram ilegalmente aos Estados Unidos provenientes da América Central. Embora o número de recém-chegados venha diminuindo, o governo de Barack Obama se diz determinado a enfrentar o problema.
Mas será difícil desbaratar essas quadrilhas. Por trás da onda de jovens migrantes tentando a sorte no sonho americano, há um sistema capitalista cruel e desregulamentado, com capacidade comprovada de se adaptar. A indústria de tráfico humano na região movimenta bilhões de dólares, segundo especialistas, e tornou-se mais sofisticada do que nunca, empregando um crescente número de oportunistas que sequestram, estupram e roubam.
Milhares de migrantes são sequestrados e sofrem abusos ao atravessar o México. Outros, como Cecilia, são mantidos como reféns nos EUA.
Nebaj, município que inclui El Paraíso, fica nos confins do planalto da Guatemala. Esta é a terra dos ixil, indígenas maias famosos por tecerem saias vermelho-vivo -e por terem sido vítimas de uma campanha militar que matou milhares de pessoas durante a guerra civil da década de 1980 na Guatemala. A região há anos manda gente para o norte. Em aldeias de todo o município de Nebaj, são comuns histórias de terrenos perdidos para os coiotes e os bancos.
"Às vezes eu acho que o meu pai não estava pensando nas consequências de ir embora", disse Magdalena Raymundo, 25, em um barraco com chão de terra que divide com o marido, na zona rural de Nebaj. Ela e sua mãe devem cerca de US$ 13 mil a um banco por causa de uma viagem que seu pai e seu irmão empreenderam em 2006.
Jorge Gúzman, gerente de uma das duas agências do banco Banrural em Nebaj, disse que os empréstimos têm mais chances de serem aprovados se a família tiver um parente mandando dinheiro do México ou dos EUA. Os empréstimos deveriam servir para a construção ou para melhorias agrícolas, mas Gúzman admitiu que uma grande parte dos recursos é usada para pagar viagens para o norte.
O número de coiotes cresce, segundo muitos aqui, porque esse é o melhor trabalho na região. Uma viagem costuma render mais do que um ano de salário de um professor.
"Eles enxergaram uma oportunidade de negócio e convenceram pessoas na América Central de que, de alguma forma, as leis dos Estados Unidos permitiriam a permanência delas", disse Luis Fernando Carrera Castro, ministro de Relações Exteriores da Guatemala.
Cecilia, que não quis que o seu nome completo e o de seus parentes fossem divulgados, sabia que a viagem seria arriscada. Sua prima Ana, 21, já havia tentado duas vezes e foi deportada em ambas. Mas Cecilia acreditou nas promessas de um traficante. "Eu pensei que, quando chegasse aos EUA, iriam me dar documentos -o coiote disse isso", contou ela.
Então, numa manhã de maio, Cecilia colocou cinco calças e cinco camisas em uma mochila e partiu. O coiote a apanhou, com mais meia dúzia de pessoas.
Primeiro, eles foram de ônibus até a fronteira com o México. Em seguida, outro conjunto de coiotes levou o grupo pelo México, novamente de ônibus, até chegarem à cidade de Reynosa, na fronteira com McAllen, no Texas. Ela contou que lá passou cerca de uma semana em um galpão com cerca de cem pessoas, até que cruzou o rio Grande e, finalmente, desembarcou em uma casa perto de McAllen. Cerca de 85 pessoas se espremiam. Os novos guias eram rudes. "Eles pegaram todo o nosso dinheiro", disse Cecilia.
Depois de cerca de uma semana, outro coiote conduziu um pequeno grupo pelo deserto, para evitar os postos de controle. "Vi duas pessoas mortas no deserto", lembrou ela. "O coiote tinha comida para si, mas não para nós."
Um carro chegou para recolhê-los. Eles se espremeram, sete ao todo, e foram levados a Houston. O novo coiote começou a ligar para o pai dela, Jacinto, que havia ido para os Estados Unidos quando jovem, mas voltou à Guatemala há mais de uma década, com uma segunda família. "O homem disse que, se não lhes pagassem, não nos deixariam sair", disse Cecilia.
É um esquema comum. Apesar de milhares de crianças terem se apresentado aos funcionários das fronteiras americanas nos últimos meses, muitos traficantes retêm outras para fins de extorsão. As autoridades americanas observam que os culpados nesses casos provavelmente não têm nada a ver com os coiotes originalmente contratados pelos migrantes. "Se fosse hierárquico, poderíamos eliminar o topo, mirar a liderança. Seria simples desbaratar a organização", disse Brian Moskowitz, agente especial de Investigações da Segurança Doméstica em Houston. "Como há filiações tênues entre células e redes -que formam, rompem e alteram alianças- fica muito difícil."
Muitos advogados estimam que 20 mil pessoas sejam sequestradas no México a caminho dos Estados Unidos por ano. Em alguns casos, as mulheres são usadas como moeda em pedágios montados por cartéis de drogas. Nos Estados Unidos, os traficantes eventualmente compram migrantes para extorquir seus parentes. Poucas famílias chegam a chamar a polícia.
A mãe de Cecilia, aflita após passar semanas sem notícias dela, pegou um empréstimo em dinheiro vivo, na esperança de chegar aos Estados Unidos, encontrar sua filha e pagar o empréstimo original. Mas, na fronteira com o México, um coiote roubou tudo o que ela tinha e se recusou a levá-la para o norte, porque ela estava grávida.
Jacinto então passou a ser considerado responsável pelas dívidas, mas não tinha como pagá-las. Cecilia disse que seu sequestrador se tornou mais agressivo.
Antes de Cecilia viajar, seu pai lhe deu o número do telefone residencial de uma ativista de direitos humanos de Miami, para quem Jacinto havia trabalhado como cortador de grama na adolescência. Fazia anos que ele não via essa família, chamada Marín. "Recebi um telefonema, e era uma menina dizendo: 'É a Cecilia. Você pode me ajudar? Não me deixam sair se eu não pagar'", disse a sra. Marín, que não quis ver seu nome completo publicado. "Eu disse: 'Quem é Cecilia?'."
O coiote deixou claras as suas exigências: queria US$ 500 imediatamente, e alguém teria de ir a Houston para recuperar a menina. Uma série de ligações depois, Marín percebeu que Cecilia era filha do seu ex-empregado.
Ela aceitou pagar US$ 500, e o homem concordou em viajar com a menina para Miami. Mas, a cada divisa estadual que ele cruzava, ligava exigindo mais.
"É uma chantagem vil", disse ela, que, no entanto, aceitou encontrar o sequestrador em Naples, a duas horas de Miami. "Não tive escolha", disse Marín. "Eles iriam prostituí-la."
A viagem terminou perto de uma loja de conveniência, onde Marín e seus acompanhantes encontraram um jipe vermelho com placas temporárias. Havia dois homens no carro. O motorista levantou a camisa para mostrar a arma enfiada na calça. Ele queria US$ 1.500, mas Marín havia trazido apenas US$ 900. Sua irmã achou mais US$ 100 na sua bolsa.
"Quando ele mostrou a arma, eu fiquei furiosa", disse Marín. "Eu falei: 'Olha, senhor, eu não a conheço. Eu não contratei você. Leve-a!'." Ele pegou os US$ 1.000 e deixou Cecilia sair do carro.
Ao longo das semanas seguintes, o pai de Cecilia foi ameaçado pelo credor e sua mãe deu à luz, acrescentando mais um filho à casa lotada de onde em breve a família pode ser despejada. Cecilia descobriu que seu sonho de mandar US$ 1.000 por mês para casa não era realista. Mas, a julgar pelo que disse o traficante quando a liberou, até que Cecilia se deu bem. "Você deveria ser grata", afirmou. "Nós a tratamos bem."
Reprodução de reportagem do The New York Times, na Folha de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário