Patrimônio cultural vira alvo de facção
Por GRAHAM BOWLEY
Yasser Tabbaa, especialista em arte e arquitetura islâmica, lembra de ter visitado um santuário do século 13 dedicado ao imã Awn al-Din, em Mossul, no norte do Iraque. O prédio foi um dos poucos a sobreviver à invasão mongol e tinha um teto abobadado belíssimo, como uma colmeia.
Por isso, ele ficou consternado quando viu um vídeo na internet que mostrava o santuário sendo explodido pela facção Estado Islâmico (EI) e virando uma nuvem de pó. "Acabou-se, simplesmente", disse Tabbaa.
Checar como estão os tesouros culturais da Síria e do norte do Iraque virou uma tarefa que parte o coração de arqueólogos e estudiosos da antiguidade. A lista de obras destruídas, depredadas ou saqueadas só cresce à medida que o EI avança no Iraque.
Extremistas sunitas estão intencionalmente destruindo santuários, estátuas, mesquitas, túmulos e igrejas -qualquer coisa que vejam como exemplo de idolatria.
"Esta região representou o centro do mundo para todos os grandes impérios da humanidade", disse Candida Moss, professora da Universidade de Notre Dame, em Indiana. "Estamos falando em gerações sucessivas de história em um só lugar, todas sendo destruídas ao mesmo tempo."
Em um discurso no mês passado, John Kerry, o secretário de Estado dos EUA, prometeu ação. "Nosso patrimônio histórico e cultural corre perigo. Acreditamos ser imperativo agir", disse.
Nos últimos três anos de guerra, contudo, vários grupos internacionais chegaram ao limite do que podem fazer. Em muitos casos, a segurança de edificações históricas ficou a cargo dos moradores das redondezas, muitos dos quais correram riscos enormes para defendê-las.
Os estudiosos não sabem ao certo o que já foi destruído. Os artefatos variam de minaretes do início do século 20 a tesouros milenares. Para muitos especialistas, a maior catástrofe é a de Aleppo, um terminal mercantil da antiguidade e maior cidade da síria. A parte central do "souk", um grande e vibrante labirinto de lojas e pátios decorados do século 17, foi destruída pelo fogo. Era o coração comercial da cidade, importante para entender como as pessoas vivem desde os tempos medievais.
Os combates danificaram a Grande Mesquita de Aleppo, uma das mais antigas da Síria. Sua biblioteca, que continha milhares de manuscritos religiosos raros, foi queimada. O famoso minarete de mil anos foi derrubado. A icônica cidadela de Aleppo, um dos castelos mais antigos do mundo e sítio de escavações arqueológicas, erguida sobre um promontório rochoso maciço, também foi alvejada. Ela vem sendo usada como base por forças do governo e foi atingida por foguetes.
Para Charles E. Jones, especialista em antiguidades na universidade Pennsylvania State, parte dos danos pode ser reparada. Mesmo assim, "não será a mesma coisa. Quando uma construção foi derrubada, foi derrubada."
Mais ao sul, a guerra danificou o Crac des Chevaliers, um dos maiores e mais bem preservados castelos de cruzados no mundo, uma maravilha da engenharia medieval que atesta as correntes cruzadas das civilizações europeia e islâmica. Boa parte dos danos foi causada pela decisão do governo de bombardear posições rebeldes, mas, segundo especialistas, os trabalhos de reparo já começaram.
Parte dos saques a sítios arqueológicos sírios pode ter sido promovida ou incentivada pelo EI ou por redes criminosas maiores, mas tanto as forças governamentais quanto os militantes parecem estar se beneficiando.
Um dos lugares mais saqueados é Apamea, no oeste da Síria, que era um dos sítios romanos e bizantinos mais bem preservados do mundo, com uma rua em colunata e mosaicos. Agora, segundo especialistas que viram fotos aéreas, com todas as crateras deixadas pelos saqueadores, o sítio mais parece a face da Lua. "Levaram quatro a cinco meses para pilhar Apamea", disse Emma Cunliffe, consultora de patrimônio cultural. "Há muitos saqueadores com escavadeiras mecânicas."
Ainda mais grave, possivelmente, é a pilhagem de Dura-Eupopos, no leste da Síria. Fundado num platô à margem do rio Eufrates, o sítio foi um posto avançado e fortificado do império romano e contém um tesouro arqueológico multicultural, incluindo uma sinagoga do século 3° e um dos mais antigos exemplares de uma "casa-igreja" cristã, uma forma primitiva de arquitetura eclesiástica.
Mas, apesar de todos os danos causados pelos saques, nada assusta os estudiosos mais que os militantes do EI. "A velocidade com que estão avançando pelo Iraque realmente lembra o avanço dos mongóis", disse Sheila R. Canby, curadora do Metropolitan Museum, em Nova York.
Os militantes do EI e outros são motivados pelo desejo de punir a "shirk", ou idolatria. Sob essa justificativa, eles vêm destruindo sítios xiitas e sufistas, estátuas de poetas, relíquias mesopotâmicas da Assíria e da Babilônia e santuários sunitas que extrapolam os limites de suas crenças.
Extremistas atacaram igrejas de Maaloula e danificaram artefatos em Raqqa, no norte da Síria, onde destruíram uma estátua assíria de um leão do século 8 a.C.. Em Mossul, no norte do Iraque, e redondezas, os militantes já destruíram dezenas de santuários sufistas e xiitas menores, túmulos, mesquitas e construções do período otomano, segundo a arqueóloga Lamia al-Gailani Werr. Possivelmente a mais importante baixa cultural do EI até agora seja uma mesquita, destruída em julho, que continha o que se acreditava ser o túmulo do profeta bíblico Jonas, cuja história faz parte do cristianismo, do islã e do judaísmo.
As convenções internacionais deveriam ajudar a proteger o patrimônio cultural durante conflitos violentos. Mas, segundo Bonnie Burnham, do Fundo Mundial de Monumentos, o tratado principal -a Convenção de Haia para a Proteção da Propriedade Cultural no Caso de Conflitos Armados, de 1954- é pouco aplicada.
Existem programas pequenos: a Unesco e o Smithsonian Institute, por exemplo, estão ensinando curadores de museus sírios a proteger coleções. A Iniciativa do Patrimônio Cultural Sírio pretende publicar relatórios semanais e tem um site na internet para receber denúncias anônimas de danos.
Muitos esperam que o avanço desenfreado do Estado Islâmico perca força à medida em que o grupo for combatido.
"Quando eles começarem a perder terreno, terão outras prioridades", disse Burnham*
Colaboraram Anne Barnard e Tom Mashberg
Reprodução de reportagem do The New York Times, na Folha de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário