quarta-feira, 29 de outubro de 2014

O povo brasileiro não existe

Fechadas as urnas e proclamado o resultado das últimas eleições, as primeiras palavras foram em direção à reconstrução da união nacional. Afinal, esta eleição teria levado o país a um ponto perigoso no qual parecem aflorar inimizades, preconceitos e outras coisas que gostaríamos de acreditar ultrapassadas. Vamos então esquecer um pouco tudo isso, voltar à vida normal, reintegrar os expulsos do Facebook. Mas, e se isso não for mais possível?
Desde as manifestações de 2013 o discurso da união nacional havia entrado em colapso. Quando massas foram às ruas, descobrimos que alguns gritavam pelo fim da PM enquanto outros queriam a expulsão de médicos cubanos do país. Daí as leituras díspares sobre o sentido ideológico daquela explosão de descontentamento: de classe média golpista nas ruas à situação pré-revolucionária. No entanto, talvez lá havíamos simplesmente descoberto que não haveria mais união, nem mesmo o silêncio complacente de sempre. Placas tectônicas se moveram.
O Brasil que conhecemos até agora acabou. Os amigos perdidos talvez não voltem mais. Por isso, arriscaria dizer que o maior saldo dessas eleições foi mostrar que não somos algo parecido a um povo dotado de identidade coletiva. Não há nada, absolutamente nada que me una a pessoas que tomam a avenida Faria Lima para gritar: "Viva a PM". Apenas ocupamos o mesmo espaço e tentamos politizar nosso desencontro absoluto, mas não fazemos parte de identidade coletiva alguma. Por isso, nosso encontro político sempre será violento.
Esta divisão não é apenas expressão de um conflito de classe. Desde que Lula ganhou sua primeira eleição, o PSDB tem, em média, 40% dos votos, chegando agora a 48%. Não há 40% de classe média no Brasil. A classe média e a classe pobre sempre estiveram ideologicamente divididas, com algo como um terço de seus eleitores oscilando entre dois polos.
Creio que é importante dizer isso porque as reconciliações nacionais na história brasileira foram sempre reconciliações extorquidas, na qual os mais vulneráveis são obrigados a engolir discursos conciliatórios enquanto as desigualdades e os comportamentos medievais de certas parcelas da população continuam a circular sem culpa. Não há razão alguma para continuar esta compulsão de repetição.
Seria bom para o país que os atores políticos estivessem à altura deste novo cenário.
PS: Pedi à Redação do jornal um mês de férias para dedicar-me às pesquisas para um novo livro que me é muito caro. Nos encontraremos novamente no início de dezembro.

Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo

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