sábado, 18 de outubro de 2014

Pela esquerda, com a direita

A primeira eleição presidencial depois da transição democrática, em 1989, opôs dois campos diferenciados: de um lado, as esquerdas, com vários partidos. O PDT lançou Brizola. O PT, Lula. O PSDB, Covas. Havia ainda o velho Ulysses Guimarães, na centro-esquerda. O que unia estas tribos, em versões mais ou menos radicais, era a cultura política nacional-estatista, preocupada com mudanças que levassem a uma sociedade mais justa e igual, baseada num Estado forte. Num outro campo, Fernando Collor polarizou as direitas. Também queria mudar, mas em outra direção. Defendia um discurso liberal, com a primazia do mercado e dos grandes negócios.
Depois que o vitorioso Collor foi para o ralo, assumiu Itamar com a "República da broa". Embora debochado, foi em seu governo que se fez o Plano Real.
Nas eleições seguintes, em 1994, o PSDB, liderado por FHC, bafejado pelo sucesso da luta contra a inflação, ganhou no primeiro turno, derrotando Lula e o PT. Deu-se, então, uma metamorfose singular --os tucanos, renegando o passado, resolveram aliar-se com a direita, o PFL, ancestral do atual DEM. Assim, o PSDB, de feição progressista e social-democrata, decidia governar com lideranças liberais e carimbadas pelo apoio à ditadura, até o seu fim, em 1979 (quando se extinguiram os atos institucionais).
FHC sustentou que a manobra era imprescindível à "governabilidade". Foi como se abrisse a garrafa da fábula --dela saiu um monstro desconhecido: tinha orelhas e rabo da reação, costado e orelhas liberais, olhos, boca e nariz social-democratas. E foi este estranho ser que governou o Brasil durante oito anos, porque, em sua reeleição, obtida por métodos nada ortodoxos, FHC bisou a dobradinha, ganhando, mais uma vez, no primeiro turno.
Sucedeu-o, em 2002, Lula e o PT. Ainda eram e já não eram o mesmo bicho dos anos 1980. O que seriam? Lula recorreu ao poeta popular: "Sou uma metamorfose ambulante". E a coisa ficou mais confusa com a famosa "Carta aos Brasileiros", cujos destinatários foram menos os "brasileiros" e mais o mundo empresarial e os homens do chamado "mercado".
Ao assumirem o poder, Lula e o PT, em vez de formar um governo com forças de esquerda, preferiram, também em nome da sagrada "governabilidade", constituir um governo com partidos e lideranças de direita. Surgiu um outro monstro. A fórmula estranha atravessaria os 12 anos de gestões petistas, mantendo-se na atual eleição. De um lado, os tucanos, dançando, rosto coladinho, com liberais e reacionários. De outro, o PT, "cheek to cheek" com a "vanguarda do atraso".
Invocando a cultura política nacional-estatista, pela esquerda, Dilma faz campanha com Collor, Barbalho e Sarney. Chegaram a fazer parte de sua "base"o inefável Jair Bolsonaro e Marco Feliciano, o pastor homofóbico, que, em reviravolta, já apoiam os tucanos. Estes reproduzem o ecletismo: Aécio vai com Marina, o PSB, os próprios pastores, a nata dos economistas liberais e o jovem ACM Neto --e ninguém fora mais neto do seu avô do que ele.
E assim vamos, e iremos, pela esquerda, sempre, mas com a direita.


Texto de Daniel Aarão Reis, publicado na Folha de São Paulo

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