RESUMO Residente nos Estados Unidos desde 2002, a universitária Carolina Faria de Morais, 27, passou 28 dias detida pela imigração americana, sob alegação de ter transportado "parafernália" para uso de droga quando era menor. Numa ocorrência de trânsito em 2006, foi achado em seu carro um cachimbo que pode ser usado para fumar maconha.
Pagou uma multa e foi liberada, mas o registro foi usado quando voltava de férias do Brasil para um pedido de deportação. Foi levada para um centro de imigrantes ilegais e submetida a péssimas condições carcerárias.
"Pior do que uma prisão", diz ela, sobre o Houston Processing Center, que mais parecia "um freezer". A seguir, o relato da universitária que retornou às aulas na segunda, mas está impedida de deixar o país até ter o pedido de deportação julgado.
"Passei férias no Brasil visitando meu avô, que mora em Londrina. Embarquei de volta para os Estados Unidos, onde moro desde 2002 com meus pais e meu irmão, no dia 26 de agosto. Ao desembarcar no aeroporto de Houston e passar pela imigração, me puxaram para uma sala.
Depois de uma hora, como eu ia perder a conexão para o Oregon, perguntei quanto ia demorar, já que tenho 'green card'. 'Você não vai a lugar nenhum. Senta e espera', respondeu grosseiramente o funcionário. Éramos eu e mais quatro pessoas, depois foi enchendo. A maioria era africanos e hispânicos.
Depois de horas, fui falar de novo com a mulher e ela pediu informação sobre minha prisão. Respondi que nunca tinha sido presa. 'Não é o que estou vendo aqui. Temos uma apreensão de objeto relacionado a drogas.'
Caiu a ficha. Em 2006, fui parada pela polícia quando dava carona para um colega de trabalho. O guri tinha uma cerveja na mão e uma caixa da bebida no banco de atrás. O policial revistou o carro e encontrou um cachimbo usado para fumar maconha.
Como tinha menos de 21 anos, fui acusada de consumir e portar bebida alcoólica e estar em poder de parafernália relacionada a drogas. A sentença foi uma multa de US$ 300 (R$ 735). Não perdi a carteira e me disseram que não haveria registro criminal.
ERRO FOI HOUSTON
Esperei mais três horas e finalmente me levaram a um oficial. Ele disse secamente que meu erro foi entrar por Houston, onde eles se importam mais com esse tipo de ocorrência do que em Chicago por onde sempre entrei nos EUA. E completou: 'Como é relacionada a drogas, você vai ser deportada'. Não tinha direito a falar com ninguém. A opção era colaborar.
Esperei por horas, até que expliquei ao oficial que tinha síndrome do pânico. Ele me deixou usar o telefone dele para ligar para minha mãe, que ficou chocada quando eu disse que seria deportada.
Meu pais são veterinários. Ele é diretor do hospital da Oregon State University e minha mãe é cirurgiã. Nos mudamos pela primeira vez para os EUA, quando eles foram fazer PhD. Eu tinha 2 anos.
Voltamos depois para Londrina, mas quando estava com 15 anos, eles foram convidados a voltar. Moramos hoje em Corvallis, no Oregon, onde curso biologia no Linn-Benton Communit College e trabalho em uma clínica de reabilitação de animais.
ASSINAR PAPELADA
O oficial me disse que se eu assinasse a papelada poderia esperar em um centro de detenção até ser levada a um juiz. Descreveu o local como um hotel. Como eu chorava muito, ele tentou me acalmar: `Vai ser só por alguns dias'. Duas oficiais me levaram para outra salinha para ser revistada de calcinha e sutiã. Isso já era 1h da manhã do dia seguinte. Tinham se passado mais de 20 horas.
Vieram buscar a mim e mais três pessoas. Os dois homens foram algemados em torno das mãos, dos pés e da cintura. A outra mulher era hispânica. Estávamos todos assustados. Entrei meio anestesiada na van. Dez minutos depois, chegamos a um local cercado de muros com arame farpado, como uma prisão [interrompe o relato e chora].
Me colocaram numa cela, mandaram tirar toda a roupa e colocar as da prisão, um uniforme azul, dado para as presas que respondem a crimes menos graves. A guarda se irritou quando viu meu computador. 'Agora tenho que colocar num cofre.' Pude ficar com dois livros.
COMO EM FILME
Fizeram minha foto contra a parede. Perguntei como seriam as coisas ali. 'Como em qualquer prisão'. Respondi: 'Nunca estive numa'. A guarda retrucou: 'É como nos filmes'. Fui levada para um dormitório com beliches de metal. Éramos 58 mulheres esperando ser deportadas.
Consegui dormir de pura exaustão, lá pelas 4h da manhã. Tava morrendo de frio, meus dedos congelados. Usava meias como luvas. O ar-condicionado ficava ligado no máximo. Não adiantava reclamar. Mesmo com todas ali batendo o queixo, diziam que era o padrão. Lá fora uns 30ºC, dentro era um freezer. Algumas não aguentavam e pediam pra ser deportadas.
Os guardas negavam, mas não consigo pensar em outro motivo para não aumentarem a temperatura. Ouvi relatos de mulheres que foram pegas atravessando o deserto. Eram jogadas no que chamam de 'geladeira'. São centros de detenção menores que existem na fronteira com o México. Batem o queixo numa cela para 50 pessoas onde colocam até cem.
TRADUTORA OFICIAL
Havia cinco brasileiras no centro no período, mas só nos encontramos quando fomos chamadas ao escritório da imigração. Esperamos horas em uma cela fedida e úmida. Elas foram pegas atravessando a fronteira com o México.
Perguntei por que eu estava ali. O oficial foi seco: 'Se você não sabe, eu muito menos?'. Como falo bem inglês, me perguntaram se eu me importava de fazer tradução para as outras meninas.
Pediram para elas assinarem a deportação. Duas concordaram. A que se recusou, ouviu: 'Não faz diferença, vai ser deportada igual'. E assim foram. Elas tinham na faixa de 30 anos. A última vez que as encontrei, faziam planos para encontrar outro coiote e tentar entrar de novo no país.
Eu me comunicava com os meus pais por orelhão. Pagava 15 centavos por minuto para ligar para celular. O café era servido das 4h30 às 5h. Só me levantei uma vez. A comida era terrível. Comprava coisas no mercado da prisão. Os preços eram absurdos. Um macarrão instantâneo que custa US$ 0,10 fora, lá era US$ 0,40. Por semana, gastava US$ 50 com comida e selo e US$ 100 com telefone.
Passava a maior parte do tempo dentro do dormitório. Muitas vezes, o banho de sol era às 7h, ninguém ia.
ROTINA ESTRANHA
O tempo foi se arrastando e aconteciam coisas estranhas como ser chamada para colher amostras de sangue e urina à 1h30 da manhã.
Uma velhinha mexicana ficou dois dias sem tomar os medicamentos para pressão e diabetes. Desmaiou no dormitório e a médica se recusou a atendê-la lá. O mais difícil era acordar toda manhã depois de ter sonhado com a minha vida e despertar de novo naquela realidade.
Após duas semanas, fui levada pela primeira vez à corte. Era 11 de setembro. Meus pais pensavam que eu iria ser liberada e chegaram a comprar minha passagem. O juiz não pode analisar meu caso, pois ainda não tinha recebido nenhum documento. Só vi meus pais de longe, não pude falar com eles. Choramos o tempo todo.
Foi uma facada descobrir que a nova audiência estava marcada para 16 de outubro, quando minhas aulas recomeçam 29 de setembro. Escrevi para a oficial de imigração, para saber se havia alguma forma de esperar o julgamento em liberdade.
Já tinha perdido as esperanças, quando na quarta-feira passada minha mãe me telefonou para contar que a advogada havia dito que eu sairia naquele dia. Por volta das 18h, ouço pelo alto-falante: '3 de baixo [identificação da cama], você está liberada'.
SEM DOCUMENTOS
A oficial me deu um cartão com a minha identificação no lugar do passaporte e do 'green card' que ficaram retidos. A guarda que me levou até o portão me pediu desculpas. Disse que tinha visto meu histórico e não via motivos para eu estar lá.
Não tinha ninguém me esperando, pois meu pai só chegaria depois da meia-noite. O guarda me emprestou o telefone. Liguei pra minha mãe, peguei um táxi e fui para o hotel. Como não tinha carteira de identidade, não consegui fazer check-in.
Meu pai só chegou 1h30 da manhã. Meu coração começou a bater forte. Depois de dois meses, ia poder abraçar ele novamente. Foi tudo muito surreal. Como embarcar no dia seguinte sem identidade?
Voltamos ao centro de detenção na manhã seguinte. Um funcionário me deu uma xerox do 'green card' e do passaporte, assinado por um oficial de deportação, e só. Consegui embarcar, mas nos colocaram numa fila para sermos revistados. O alívio só veio quando o avião partiu.
EM CASA
Estava indo para casa, mas sofria ao pensar que não estaria lá para ajudar as gurias. Minha cama era o escritório da "Carito", o apelido carinhoso que me deram. Na saída, elas me deram um papel com assinaturas e desenhos. Escondiam bolachinhas para me dar de presente.
Lá dentro, eu chorava todos os dias, mais por causa delas do que por mim. Tenho uma família, uma vida. Amo o Brasil e os Estados Unidos, tanto lá quanto aqui ia seguir meus estudos, ter apoio. Elas não têm nada. São tratadas como se não fossem nada.
Fiquei presa de 27 de agosto a 24 de setembro. Foi um alívio gigante chegar em casa e abraçar minha mãe com o maior sorriso que já vi. Choramos sem parar. Era como se conseguisse respirar pela primeira vez em um mês.
Meus professores ficaram do meu lado, mandando cartas de recomendação. Voltei às aulas nesta segunda e meus colegas estão se revezando para me dar carona, já que estou sem carteira de motorista. Dei entrevistas para o jornal da faculdade, falando do absurdo de ter sido presa em solo americano sem uma acusação formal.
NOVAS PRIORIDADES
Minha família criou um grupo fechado no Facebook: Bring Lina Home, que tem cerca de 500 pessoas. Meus pais já gastaram até agora US$ 16 mil, dinheiro da poupança para os meus estudos.
Essa experiência mudou a minha vida. Mudam a perspectiva e as prioridades. Na detenção, éramos uma família. Ouvíamos as histórias e víamos as lágrimas e o medo uma das outras.
O sistema tem que mudar. Os centros para imigrantes ilegais são piores que prisões. Ninguém olha por aquelas pessoas. Os Estados Unidos continua sendo uma casa pra mim, mas o controle de imigração está falido.
Ainda estou na luta para poder ficar aqui. Meu processo de deportação pode levar anos até ser julgado. Não posso deixar o país. Na frente do centro de detenção havia uma réplica da Estátua da Liberdade. Tirei uma foto ali.
Voltei pra casa com uma camiseta com a famosa frase do filme 'Apolo 13' sobre a fracassada missão espacial: 'Houston, we have a problem'. É bem o resumo do que pretendo ao contar a minha experiência numa prisão no Texas. Um problema que não é só meu.
OUTRO LADO
O ICE (Immigration and Customs Enforcement) informa que a detenção pelo serviços de imigração de uma residente de posse do "green card" se dá apenas em caso de uma imputação criminal.
É a informação genérica que foi dada aos advogados e à família da estudante brasileira. Carolina deixou o Houston Processing Center em liberdade condicional ("on parole"). A decisão é "discretionary", ou seja cabe exclusivamente ao ICE aceitar ou não o pedido.
Não foi informado qual o embasamento jurídico para a liberação. Até o fechamento desta edição, o escritório da emigração em Houston não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Do blog Rede Social, de Eliane Trindade, na Folha de São Paulo.
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