quarta-feira, 22 de outubro de 2014

A poeira das manifestações

AGORA JÁ sabemos o final da história. O filme iniciado em 6 de junho de 2013 terminou no dia 5 de outubro, com a eleição do novo Congresso. Tudo começou quando nosso herói, o jovem idealista cheio de boas intenções, foi para a rua enfrentar o velho político responsável "por tudo que aí está". O público esperava ansioso por um final feliz, com a derrota do vilão. Deu tudo errado.
A bancada de deputados conservadores aumentou muito: segundo cálculos do Diap, desde o fim da ditadura não se via Congresso tão reacionário. Embora alguns se digam surpresos, esse roteiro não é novo.
França, 1968. Universitários protestam contra a proibição de que rapazes visitem os quartos das alunas à noite. O incidente logo se desdobra em críticas à repressão sexual, às universidades, ao Estado, ao capitalismo. No auge da crise, De Gaulle convoca eleições. Os protestos cedem, e o governo obtém uma vitória esmagadora: a direita elege 396 deputados, contra 91 da esquerda.
Espanha, 2011. Oito milhões de jovens "indignados" com a crise econômica ocupam as praças de 58 cidades para protestar contra o desemprego, os bancos, o capitalismo, a globalização. Atacam todos os partidos ("Vocês não nos representam"). Em novembro, o PP, de direita, elege 53% dos deputados.
Manifestações libertárias reforçam o conservadorismo? Depende. Protestos "contra um" em geral são mais eficazes que protestos "contra todos": o "Caracazo" na Venezuela (1989) e o "Cacerolazo" na Argentina (2001) levaram ao impeachment de Carlos Andrés Pérez e à renúncia de Fernando de la Rúa. Quem tem uma meta sabe o que precisa fazer.
As jornadas de 2013 tinham, a princípio, uma só bandeira: anular o aumento nas tarifas de transporte --daí seu êxito inicial. Mas, tão logo a demanda foi satisfeita, os jovens sacaram das redes sociais uma pauta desconexa: contra a Copa, a PEC 37, a homofobia, a corrupção...
Sem um objetivo, não havia como formular um plano de ação. Aliás, nem havia mais ação, só a rotina das mesmas marchas. A bazófia de seus líderes --"amanhã vai ser maior''-- ocultava uma vontade de impotência: diziam que estavam fazendo história, mas não queriam sujar suas mãos puras no lixão da política.
Impregnados por esse moralismo anarquista, os manifestantes hostilizavam os ativistas de esquerda, que aceitaram a realidade prosaica do jogo democrático --as doações eleitorais, os acordos partidários, a gestão do Estado. Mas como estes militantes também compartilhavam do ideal de uma sociedade sem Estado, mostraram-se muito vulneráveis a esses ataques. Houve uma desmobilização geral: nesta eleição, o PT teve menos votos de legenda para deputado federal que o PSDB. A bancada sindical caiu de 83 para 46 deputados federais.
Enquanto os libertários "ameaçavam" o poder com o voto nulo, uma massa silenciosa aguardava sua vez de entrar em cena --para votar no policial que reprimia os baderneiros, no pastor que ofendia os homossexuais, no ruralista que atacava os comunistas. Nossos reacionários não fazem poeira: fazem política. Eles sabem que os manifestantes passam, mas os deputados ficam.


Texto de Maurício Puls, publicado na Folha de São Paulo

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