Da minha sacada, enxergo uma copa iluminada: uma enfermeira está sentada à mesa, lendo e tomando chá. De madrugada, a janela parece um farol da vida que persiste. Mais cedo, com o som de mil afazeres transbordando das outras janelas, parece uma lembrança silenciosa do sofrimento, da morte, da trágica dignidade de qualquer existência.
É uma lembrança especialmente bem-vinda quando os vizinhos fazem a festa, não por estarem alegres, mas para impor sua suposta alegria aos outros. Explico.
A riqueza moderna se confunde com sua ostentação: não adianta ser rico sem suscitar a inveja dos outros. A mesma coisa vale para os sinais aparentes de felicidade: o que adianta fazer a festa sem os outros me invejarem?
Agora, a riqueza ostentada pode ser real, enquanto a festa ostentada é sempre triste. O volume da nossa festa sobe quando precisamos convencer a todos de que aquela é a trilha sonora de nossa vida. Claro, se aquela fosse mesmo a trilha da nossa vida, não precisaríamos convencer ninguém, estaríamos apenas preocupados em dançar no tempo da música.
Ao lado do meu escritório, acaba de subir um prédio, na esquina da Batataes com a Pamplona: um apê por andar, de 407 metros, quatro suítes, cinco vagas etc. Na sexta passada, foi o churrasco para os funcionários, quase em fim de construção.
Na lembrança dos moradores do quarteirão, o volume rivalizou com uma festa da campanha de Celso Russomanno em 2012, na esquina da Nove de Julho.
Decidi descer e pedir que baixassem um pouco. No corredor do meu prédio, esperando o elevador, pela porta entreaberta, vi a sala do apartamento de um vizinho transformada em enfermaria, e ele deitado lá, numa maca, imóvel, no funk.
No meio da música ensurdecedora, no estande de vendas do prédio que festejava, encontrei outros moradores da vizinhança. Um deles comentou: esse prédio vai se chamar o Farofão. O bairro gosta de nomes estrangeiros, que seriam mais "chiques", e sugeri que o prédio se chamasse o Ste Farofe. Talvez o nome pegue; seria pertinente: farofeiro não tem nada a ver com brega ou cafona, farofeiro é quem ostenta a festa.
No estande de vendas, um atendente nos disse que ele até concordava, mas não podia fazer nada porque ele era "vendedor autônomo". A resposta parecia-se estranhamente com a protestação dos maquinistas dos trens que iam para Auschwitz: eles eram funcionários da ferrovia, sua tarefa era apenas a de dirigir o trem.
Fui para a entrada da rua Pamplona. Os policiais já estavam lá, chamados por outros moradores da vizinhança e, claro, eles achavam o barulho excessivo. O incrível, para mim, foi constatar que a chegada de uma viatura e o pedido dos policiais não eram suficientes para que um aloprado baixasse o volume.
Você se queixa da falta de segurança nas ruas brasileiras? Se uma viatura não basta para que baixe o volume de uma festa ostentada, é que a polícia, aqui, não tem autoridade alguma.
Pedi ao vigia da entrada que chamasse um responsável da construtora. O segurança nem se mexeu. Aquele era o momento em que ele esperava que eu dissesse: "Você não sabe com quem está falando"; mas não me ocorreu dizer. E ele começou a repetir, como uma litania indignada: "Você não é ninguém! Você não é ninguém!".
Achei ótimo; durante anos de análise, tentei me livrar do sofrimento narcisista de quem acha que é "alguém". Tudo o que quero é não ser ninguém.
Mas a frase do vigia era extraordinária. Ele me dizia que, para baixar a música, precisaria que "alguém" pedisse. Como eu e os policiais éramos "ninguéns", então íamos escutar a música que o patrão dele julgasse boa.
Os peões de obra que entravam e saíam da festa eram os únicos que pareciam concordar com os policiais e comigo. Eles deviam saber que aquela alegria, ostentada até ensurdecer o bairro, era triste de morrer.
Festa ostentada, e portanto triste, acontece em todo país –talvez um pouco mais aqui que alhures. O estilo Pôncio Pilatos de quem não vê, não ouve, não fala (porque o acontecido está fora de seu cantinho) também se encontra em cada país –talvez um pouco mais no Brasil. Agora, a chegada de uma viatura de polícia não surtir efeito algum, isso só vi no Brasil. Da mesma forma, mundo afora, a frase "Você não sabe com quem está falando" se tornou cômica; no Brasil, aparentemente, sobrevive seu complemento servil: "Eu só escuto se você for alguém".
Não esqueçam o Brasil em suas próximas rezas.
Texto de Contardo Calligaris, publicado na Folha de São Paulo.
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