domingo, 2 de agosto de 2015

Uma mente brilhante

CRÍTICA LIVRO/BIOGRAFIA

Uma mente brilhante

Em autobiografia, neurologista Oliver Sacks mostra por que é um raro intelectual capaz de transcender as fronteiras entre ciência, arte e filosofia
REINALDO JOSÉ LOPESCOLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Dizer que "Sempre em Movimento", novo livro do neurologista e escritor britânico Oliver Sacks, 82, não segue o padrão que se espera da autobiografia de um cientista seria abusar do eufemismo.
Autobiografias científicas, afinal, não costumam misturar descrições do funcionamento do cérebro com relatos sobre a carreira de motoqueiro, fisiculturista e usuário de drogas do protagonista.
De fato, se fosse uma obra de ficção, o livro seria notável pela mistura de gêneros, da comédia de costumes ao relato de viagem, com pitadas de especulação filosófica e erotismo. Ao mesmo tempo em que analisa de forma brutalmente honesta sua juventude errática, seus laços familiares e sua sexualidade, Sacks retrata como a compreensão sobre o funcionamento, a complexidade e a diversidade do cérebro humano avançou de meados do século 20 até hoje.
Conhecido pela habilidade em retratar o mundo interior de pessoas com autismo, com dificuldade de reconhecer rostos ou com síndrome de Tourette (distúrbio que leva a tiques obsessivos e ao uso incontrolável de palavrões, por exemplo), Sacks usa essas técnicas para delinear personagens de sua própria vida.
Entre eles há figuras-chave da ciência e da literatura, como seus amigos Francis Crick (codescobridor da estrutura do DNA) e W.H. Auden (um dos maiores poetas britânicos do século passado).
É difícil não notar o abismo que separa a tremenda empatia dos escritos e do trabalho cotidiano de Sacks –ferramenta indispensável nas tentativas de entender a cabeça dos pacientes– e suas dificuldades quase patológicas de formar laços afetivos.
Em dado momento da narrativa, de modo aparentemente casual, ele comenta: "Após aquele agradável romance de aniversário, eu passaria os 35 anos seguintes sem nenhuma relação sexual". (A lacuna seria sanada em 2008, quando conheceu seu atual companheiro, o escritor Bill Hayes.)
Para quem pensa de modo freudiano, faz sentido associar as décadas de celibato à reação da mãe do autor ao saber de sua homossexualidade: "Você é uma abominação. Quisera que você nunca tivesse nascido". Muriel Sacks, no entanto, logo se reconciliou com o filho caçula.
Além do preconceito contra gays típico da época e do meio social no qual o jovem Oliver cresceu, o livro deixa entrever outros elementos que o tornaram irremediavelmente travado nesse aspecto.

CURIOSIDADE INFANTIL

Um deles é simplesmente a sua timidez. Outro, mais complexo e cativante, é a curiosidade quase infantil –no melhor sentido da palavra– que ainda parece acompanhar o médico octogenário.
Incapaz de entabular uma conversinha mole sobre o tempo ou sobre o futebol, o neurologista é capaz de parar desconhecidos na rua apenas para compartilhar sua empolgação com o eclipse da Lua que está acontecendo.
Ou de entrar num bar gay para chamar a atenção dos frequentadores para as propriedades ópticas das luzes coloridas do lugar.
"Ei, vocês, parem de falar sobre sexo! Deem uma olhada em algo realmente interessante", teria dito ele à clientela do bar.
Nem um tumor ocular é suficiente para desligar essa curiosidade –Sacks lamenta a perda da visão num dos olhos ao mesmo tempo em que comemora os "encantadores" fenômenos visuais produzidos pela ação da radioterapia e do laser em sua retina.
Seis meses depois de Sacks publicar um texto confessional no jornal "The New York Times", anunciando ter um câncer terminal e se despedindo antecipadamente da vida, as previsões do médico sobre sua morte iminente ainda não se concretizaram.
Outra previsão, porém, provavelmente é uma aposta segura: Sacks é um dos últimos exemplares de uma estirpe de intelectuais capaz de transcender as fronteiras que separam a ciência da arte e da filosofia. Não haveremos de ver outros como ele tão cedo.

SEMPRE EM MOVIMENTO: UMA VIDA
AUTOR Oliver Sacks
TRADUÇÃO Denise Bottmann
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 59,90 (384 págs.) e R$39,90 (e-book)
AVALIAÇÃO bom

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