segunda-feira, 10 de agosto de 2015

O sobrevivente

O sobrevivente

Principal tradutor do russo no Brasil, Boris Schnaiderman segue ativo aos 98 anos e lança autobiografia em que retrata sua luta na Segunda Guerra
MARCO RODRIGO ALMEIDADE SÃO PAULO

Boris Schnaiderman já enfrentou os nazistas, a ditadura militar, uma arritmia cardíaca e um câncer de intestino. Sobreviveu a tudo isso. Venceu ainda outro inimigo poderoso, o passar do tempo.
O senhor que recebeu a Folha em seu apartamento caminha com firmeza, fala com elegância, relembra detalhes com precisão espantosa. É difícil acreditar que tenha realmente 98 anos.
"Mas os documentos não negam. São 98 anos bem batidos, e vividos com muita intensidade", conta ele.
Não faltam mesmo histórias, e lutas vencidas, na trajetória de Boris Schnaiderman. Nascido na Ucrânia em maio de 1917, veio com os pais para o Brasil em 1925 –um pouco antes presenciou a filmagem de um dos momentos sublimes da história do cinema, a cena da escadaria de Odessa de "O Encouraçado Potemkin" (1925), do diretor Sergei Eisenstein.
Boris tornou-se o principal tradutor literário do russo no Brasil (verteu clássicos de Dostoiévski, Tolstói e Tchékhov), o primeiro professor do curso de língua e literatura russa da USP, em 1960, e um ensaísta renomado.
Uma vida que poderia render páginas e mais páginas de um livro de memórias –e Boris realmente as escreveu, mas, um tanto por modéstia, um tanto por pudor em ferir a memória de alguém, achou por bem interromper o trabalho.
Resolveu então ater-se a um momento específico, o mais duro combate de sua vida. Boris foi um dos 25 mil homens enviados pela Força Expedicionária Brasileira (FEB) para lutar na Itália durante a Segunda Guerra Mundial.
O tema já havia inspirado o romance "Guerra em Surdina" (1964), primeira e única incursão de Boris na ficção. Agora ele o retoma no relato autobiográfico "Caderno Italiano", compilação de textos novos e antigos lançado pela editora Perspectiva.
"Da primeira vez narrei o que aconteceu ora comigo, ora com companheiros. Tudo misturado com partes imaginadas. Mas eu não sou um ficcionista, só sei fazer autobiografia. Por isso retomei de outra maneira esse tema que tanto me marcou", explica.

UM PACIFISTA NO FRONT

A convocação para a guerra é retratada como um momento de pânico em muitos filmes e livros sobre combatentes. Com Boris foi diferente. "Na verdade, eu fiz com que me convocassem."
O futuro tradutor formou-se em agronomia em 1940, mas para registrar o diploma teve que se naturalizar brasileiro e prestar o serviço militar.
Prevendo que a participação do Brasil no conflito seria inevitável, exagerou tanto as próprias habilidades para o serviço ativo que não teve dúvidas de que seria recrutado para a guerra na primeira oportunidade.
Foi com júbilo que em certa manhã de 1944 encontrou seu nome na relação dos convocados. Os pais ainda tentaram livrá-lo da convocação, mas Boris já estava decidido.
"Sempre fui um pacifista convicto, mas estava convencido de que aquele era o caminho certo. Ainda não se tinha notícia da extensão daquilo que viria a ser chamado de Holocausto, mas tudo parecia indicar que estava em desenvolvimento", diz. "Há ocasiões em que não há outro jeito. É preciso lutar mesmo."
O turbulento clima político do período era uma preocupação constante para Boris. Ele conta no livro que chegou a desmaiar ao ouvir pelo rádio um discurso de Getúlio Vargas que parecia abrir brechas para a adesão do Brasil às forças fascistas.
Também ficou decepcionado com o comunismo depois que a Alemanha e a União Soviética assinaram um pacto de não agressão, em 1939. Pouco depois os alemães invadiram a Polônia, dando início à Segunda Guerra.
Boris passou mais de um ano em solo italiano, entre 1944 e 1945. Era calculador de tiro da artilharia, um dos responsáveis por determinar o deslocamento dos canhões.
"Eu mesmo não disparei tiros lá, apenas em exercícios, mas passei por muitos momentos perigosos. Foi quase um milagre não ter sido ferido", relembra.

SUSTOS MORTAIS

Um desses momentos ocorreu no povoado de Silla, onde os brasileiros ficaram instalados diante de uma ponte constantemente bombardeada. Para despistar o inimigo, instalaram no local máquinas fumígenas. Além de viveram dentro de uma nuvem de fumaça, os soldados se depararam com um inverno rigorosíssimo, de temperaturas de até 20 graus Celsius negativos.
Tanta fumaça, no entanto, acabou por confundir um aviador norte-americano, que metralhou um prédio de soldados aliados pensando que atirava em equipamentos alemães.
"Eu estava diante da janela quando vi o avião com o cano dirigido para nosso prédio, cuspindo fogo. Recuei imediatamente para a quina da janela, e meus companheiros se jogaram no chão. Foi um belo susto."
Boris também participou do ataque ao Monte Castello (norte da Itália), a mais simbólica batalha brasileira na guerra. Depois de algumas derrotas duras, os brasileiros venceram a resistência alemã e conquistaram o monte em fevereiro de 1945. Boris conta ter ficado mais de 48 horas ininterruptas fazendo cálculo de tiro na ocasião.
A vitória foi uma surpresa para ele, que esperava um desastre total da FEB.
"Eu achava que o homem precisava ter consciência, se identificar com a causa, para poder lutar bem. A maioria do nosso Exército era contra a guerra, não tinha consciência do que estava em jogo", diz.
"Eram homens destreinados, vindos de um país sob ditadura, para lutar pela democracia na Europa, contra inimigos poderosos. E no entanto eles se saíram bem, tão bem quanto os melhores Exércitos. Achei incrível isso."
Como em geral ocorre entre os combatentes, Boris criou um laço forte com seus companheiros de Exército. Dos que lutaram com ele, dois ainda estão vivos, mas um já completamente desmemoriado.
"Essa é a parte triste de envelhecer. Você vai perdendo muitas pessoas."
Fora isso, não tem muito do que se queixar. A saúde deu uma vacilada nos últimos anos –Boris colocou um marca-passo e teve um câncer–, mas segue com energia invejável.
Em seu apartamento rodeado de livros por todos os lados, continua a trabalhar. Nos últimos anos vem se dedicando a reelaborar suas antigas traduções com a ajuda da mulher, a professora de comunicação e semiótica da PUC-SP Jerusa Pires Ferreira, 77.
Ainda tem fôlego para caminhadas diárias e para ler os muitos livros que recebe toda semana. Come praticamente de tudo e, vez ou outra, bebe as cachaças mineiras de que tanto gosta.
"As doenças deixaram alguma sequelas, mas dá pra aguentar. Meu organismo reage bem. Ainda estou firme."

CADERNO ITALIANO
AUTOR Boris Schnaiderman
EDITORA Perspectiva
QUANTO R$ 45 (192 págs.)

Reprodução da Folha de São Paulo

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