MINHA HISTÓRIA BERND WOLLSCHLAEGER
Sombra história
Médico alemão que hoje vive nos EUA conta como rompeu com a família ao descobrir o passado nazista do pai, converteu-se ao judaísmo e imigrou para Israel
RESUMO O médico Bernd Wollschlaeger, 57, rompeu com a família após descobrir o papel de seu pai Arthur, condecorado pelo ditador nazista Adolf Hitler, na Segunda Guerra (1939-1945). Após converter-se ao judaísmo, Wollschlaeger mudou-se em 1987 para Israel e obteve cidadania israelense. Um dos protagonistas do documentário "Fantasmas do Terceiro Reich", da brasileira Claudia Sobral, ele vive desde 1991 nos EUA.
Nasci em 1958 em Bamberg, no sul da Alemanha, onde aprendi muito cedo a importância da história por estar cercado por ela. Perguntava aos meus pais sobre seu passado, sobre meus avós, mas eles só se limitavam a dizer que houve uma guerra.
Mas gradualmente comecei a colher duas versões diferentes. Da minha mãe, uma tcheca de etnia alemã, ouvia sobre o horror de ter sido desalojada de casa, de ter perdido tudo que lhe era caro.
Do meu pai, ouvi histórias de glória. Comandante de tanque, ele participou dos ataques à Polônia (1939), à França (1940) e à União Soviética (1941). Um dia ele me mostrou a condecoração que recebeu de Hitler: a Cruz de Ferro.
As dúvidas surgiram entre meus 8 e 9 anos, porque havia algo curioso na nossa casa em Bamberg. Vivíamos de aluguel no primeiro andar de uma construção antiga. A dona, uma condessa com quem minha mãe me proibia de falar, morava no andar de cima.
Ao lado da escada que levava ao seu apartamento, havia o retrato de um militar que também usava a Cruz de Ferro. Meu pai o chamava de "traidor", e eu não entendia por que alguém que se parecia com ele poderia ser ruim.
Até que descobri que o retratado era Claus von Stauffenberg, o coronel que liderou a tentativa de assassinato contra Hitler em 20 de julho de 1944. E foi com sua viúva, Nina, que aprendi mais tarde que houve uma Alemanha de ditadura e pessoas que lutaram contra o sistema.
Quando tinha 14 anos, nos ensinaram na escola que a Olimpíada de Munique (1972) mostraria ao mundo uma nova Alemanha, e não a de 1936, quando Hitler usou os Jogos como propaganda nazista.
Meus pais chamaram amigos para ver a abertura. Quando a equipe com a estrela de davi na bandeira entrou no estádio, o clima mudou e eles pararam de falar, como se tivesse aparecido um fantasma.
Dez dias depois, essa equipe foi feita refém por terroristas palestinos. E então o curso da minha vida mudou no dia seguinte ao fracasso do resgate, quando li nos jornais a manchete "Judeus mortos novamente na Alemanha".
Na escola, tiveram de nos explicar sobre Auschwitz, a solução final, a morte de judeus como política de Estado.
Apesar de meu pai ser um cara muito durão, eu o confrontei: "Pai, o que sabe sobre o Holocausto?" Ele respondeu que era mentira, tudo propaganda comunista. No curso de vários anos, o abordei para tentar extrair a verdade. Aos poucos, ela apareceu.
Em janeiro deste ano, um especialista militar me entregou uma mala do mecânico do tanque de meu pai –cheia de rolos rasgados da Torá.
Os parentes dele relataram que os membros do regimento do meu pai destruíram vilas judaicas na Polônia e na Rússia, mataram todos e saquearam. E usaram os rolos da Torá para envolver os motores dos veículos e evitar que perdessem calor no inverno. Meu pai não apenas soube do Holocausto: participou dele.
Quando eu tinha 17, 18 anos, ele defendeu o Holocausto dizendo: "Foi necessário, porque alguém tinha de se livrar da sujeira".
Dos 19 aos 26, 27 anos, passei por uma mudança espiritual. Converti-me e me tornei judeu ainda na Alemanha: foi um total rompimento com minha família. Tive de partir e imigrei para Israel em 1987.
Deixei a nacionalidade alemã para trás, me tornei israelense, deixei a fé cristã para me tornar judeu, servi no Exército de Israel. Me desconectei totalmente do antigo eu para manter a sanidade.
Minha jornada foi me reconciliar comigo, entender: como posso ser alemão, filho de um pai que fez isso? E como ser eu mesmo, normal? Foi uma redenção pessoal.
Comecei essa jornada me sentindo culpado. No fim, me tornei judeu por convicção. Não posso limpar o passado de meu pai. Hoje não me sinto mais culpado, mas sinto que, como filho dele, sou responsável. Tenho de carregar essa vergonha. Mas fiz e faço tudo o que posso para contribuir para essa redenção.
Meu pai nunca foi capaz de sentir remorso. Antes de morrer, incluiu no seu testamento que eu nunca deveria visitar sua sepultura, não deveria comparecer a seu funeral, me deserdou. Obviamente, não fui ao seu enterro –estava em Israel quando morreu. Mas visitei seu túmulo 20 anos depois, com meu filho.
A parte irônica é que o túmulo dos meus pais em Bamberg fica ao lado do muro que separa o cemitério cristão do judaico. Quando você olha na direção desse muro a partir do túmulo deles, vê do outro lado as lápides judaicas.
Olhando para aquilo, disse ao meu filho: "Essa é a lição que posso lhe ensinar: a história sempre projetará sua sombra, mesmo na morte. Por isso é melhor lidar com ela estando vivo, saindo da sombra e aprendendo suas lições".
Meu pai nunca fez isso. Literalmente, ele repousa sob a sombra da história por toda a eternidade.
Reprodução da Folha de São Paulo.
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