domingo, 16 de agosto de 2015

Armas dividem EUA em dois

INTELIGÊNCIA/TIMOTHY EGAN

Armas dividem EUA em dois

As ondas de massacres a tiros vão continuar a percorrer os EUA, como a arrebentação na proa da nau do Estado. A cada poucas semanas, recebemos um banho de água fria. Estremecemos, nos arrepiamos e então nos preparamos para enfrentar o jato seguinte.
E assim seguimos adiante, uma nação cujos habitantes têm 20 vezes mais chances de morrer de violência armada que os da maioria dos outros países desenvolvidos. A única coisa extraordinária em relação aos massacres a tiros que acontecem no país é como são comuns os locais onde eles acontecem: escolas, faculdades, centros de recrutamento militar, cinemas, parques e igrejas.
Será que não existe nenhum lugar seguro? Na realidade, existem vários. Quer proteção em um país que autoriza um homem mentalmente perturbado a adquirir uma arma para caçar pessoas em um espaço público? Vá ao aeroporto. Ou a uma partida de beisebol das grandes ligas, ou, ainda, a um estádio da Liga Nacional de Futebol Americano.
A segurança pode ser apenas de faz-de-conta nos locais onde jogam as grandes ligas americanas, como dizem os críticos, mas os donos desses espaços não concordariam. Eles impõem a presença de detectores de metais, e a maioria proíbe até mesmo policiais de folga de levar armas às partidas.
Em todo o país, se você quiser reduzir suas chances de ser baleado, fique longe do Sul. Essa é a região mais violenta dos EUA e também onde há mais cidadãos armados. Mais armas, obtidas com facilidade por doentes mentais, fanáticos religiosos e extremistas antigoverno, traduzem-se em mais mortes.
Se quiser se arriscar menos, é melhor ir a uma cidade ou a um Estado que impõe restrições às armas. A maioria dos Estados com leis mais rígidas sobre armas tem menos mortes por armas de fogo.
Essa é uma América, a América um pouco mais segura. Ela inclui zonas onde o governo impõe buscas para detectar e barrar armas de fogo, como aeroportos, tribunais e muitos colégios. Mas, o que é mais importante, ela também abrange imóveis usados pelo futebol americano profissional, nossa obsessão nacional mais popular.
A outra América é uma zona livre para atiradores, sendo essa liberdade respaldada por políticos que acham que ela deveria ser ainda mais cheia de pessoas comuns andando com armas letais. Logo após a tragédia recente em um cinema de Louisiana -um massacre cometido por um homem que pôde obter uma arma de fogo legalmente, apesar de ter um histórico de doença mental-, Rick Perry, do Texas, descreveu as zonas livres de armas de fogo como má ideia.
Na visão dele, que ecoa a dos fanáticos que controlam o Partido Republicano, todo mundo deveria andar armado, em todo lugar. Quando um tiroteio começa, o vilão armado será morto pelo mocinho armado.
Esse cenário quase nunca se concretiza. A lógica é pura bobagem, e as chances de um contra-assassino perfeitamente sincronizado conseguir abater o assassino malévolo são ínfimas.
Mesmo quando tal situação realmente acontece, como no massacre de Tucson, Arizona, em 2011, o cidadão armado que intervém na confusão pode representar um perigo mortal para outras pessoas. Em Tucson, uma pessoa inocente ficou a segundos de ser baleada por um transeunte armado que não tinha certeza em quem atirar.
Com mais de 500 lojas varejistas, o shopping Mall of America, que atrai 40 milhões de visitantes por ano, está tentando ser uma zona livre de armas. "Armas de fogo são proibidas neste espaço" é a política oficial do shopping.
Se o espaço aceitasse a sugestão de Rick Perry, os consumidores poderiam perambular entre as lojas com armas na cintura, prontos para se enfrentar em um tiroteio. Como os proprietários de espaços de concertos e esportes profissionais, os donos do shopping têm ideias diferentes.
O shopping tem uma força de segurança composta por mais de cem pessoas. Sim, eu já ouvi a piada sobre os seguranças de shopping displicentes. Porém, corretamente, o Mall of America confia mais neles que em consumidores armados para proteger as pessoas.
Por mais que possa parecer surpreendente, o número de pessoas que possuem armas de fogo está diminuindo em todo o país. Hoje, quase um terço das famílias americanas tem um adulto com porte de armas. É uma queda em relação a 1973, quando esse era o caso de quase metade das famílias.
O rumo que estamos seguindo nos conduz a algumas regiões que são mais seguras que outras e a alguns espaços públicos mais seguros que outros, comandados por empresas privadas.
A nova realidade vem acompanhada da inconveniência dos detectores de metais e das revistas corporais semelhantes ao que se vê rotineiramente em aeroportos: zonas livres de armas onde essa regra é implementada, não mera sugestão.
Como maneira de fazer o cotidiano parecer menos assustador, a nova realidade é absurda.
Porém, parece que esse é o custo de uma interpretação extrema de uma emenda constitucional que foi criada para combater a tirania britânica -uma liberdade que se converteu, ela própria, em tirania.


Texto do The New York Times, reproduzido na Folha de São Paulo

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