segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Negro é lindo, mas branco é melhor: a “pigmentocracia” do Brasil



Publicado no The Globe and Mail. Por Stephanie Nolen. Visto no Diário do Centro do Mundo.


Seis anos atrás, quando Daniele de Araújo descobriu que estava grávida, saiu afoita pela viela suja de sua modesta casa em um dos morros do Rio de Janeiro. A área é controlada por traficantes de drogas e ela subia a passos largos. Daniele precisava alcançar um lugar cuja magnitude pudesse fazer ecoar alto e claramente seu pedido a Deus: que lhe desse uma menina, saudável, mas acima de tudo branca.
Daniele sabe sobre os efeitos da genética: tem uma mãe branca e um pai negro, irmãs que podem passar por brancas e um irmão de pele escura como ela. “Sou realmente negra”, diz. Seu marido, Jonatas dos Prazeres, também tem pais das raças branca e negra, mas sua pele é clara. Quando se apresentou para o serviço militar o oficial escreveu no formulário: branco.
E quando seu bebê nasceu, o olhar de Daniele foi de alívio: a pequena Sarah Ashley era rosa como os lençóis que a envolviam. Melhor ainda, ao crescer, ficou claro que Sarah tinha cabelos lisos e não “cabelo ruim” – como são universalmente chamados, no Brasil, os cabelos encaracolados dos negros.
Hoje, Sarah Ashley tem cachos morenos caindo sobre suas pequenas costas e que são a grande alegria na vida de sua mãe. O tom de pele da pequena está entre os tons de pele de seus pais – mas clara o suficiente para que a registrassem como branca, exatamente como esperavam. (Muitos documentos oficiais no Brasil perguntam sobre “raça ou cor”, junto com outras informações básicas de identificação).
Daniele e Jonatas mantêm as fotos de seu casamento de 2005 em um álbum com capa de veludo vermelho, guardado na única prateleira da sala. As fotos, que chamam a atenção pelo brilho, mostram membros da família com uma dúzia de diferentes tons de pele, de braços dados e faces plissadas em sorrisos largos para os retratos posados. Por todo o país encontram-se álbuns com fotos similares nas salas de estar. Um terço dos casamentos no Brasil é inter-racial (dizem ser a maior taxa do mundo. No Canadá, apesar da enorme diversidade encontrada em cidades como Vancouver e Toronto, a taxa é abaixo e 5%). Essa estatística é a mais óbvia evidência de como raça e cor no Brasil são vivenciadas diferentemente de outras partes do mundo.
Mas a diversidade de cores não consegue disfarçar uma verdade fundamental, diz Daniele: há uma hierarquia e os brancos estão no topo dela.
Muitas coisas estão mudando no país. Daniele deixou a escola quando adolescente para trabalhar como doméstica – praticamente a única opção de trabalho para mulheres com uma pele escura como a dela. Mas agora tem um emprego na área de assistência médica e uma casa própria, coisas que jamais poderia imaginar quinze anos atrás. Mesmo assim, diz: “Isso é Brasil!”. E não há nenhuma preciosidade aí. Negro é belo, mas branco é simplesmente mais fácil. Mesmo a vida da classe média pode ser uma luta por aqui. E os pais de Sarah Ashley querem que a vida de sua filha seja facilitada.
A trajetória da história do Brasil do colonialismo, escravidão, regime ditatorial, seguida por uma tumultuada mudança social, produziu um país que é culturalmente homogêneo e cromaticamente muito diversificado. A identidade nacional de um Brasil racialmente mixado é um orgulho – mais que qualquer país na Terra, dizem os brasileiros. Menos discutida, porém, é a desigualdade racial generalizada, igualmente visível em todos os restaurantes repletos de patrões brancos e garçons negros, em todo prédio onde o porteiro negro indica o elevador de serviço para o visitante negro.
A experiência brasileira contrasta marcadamente com a forma como essas questões são abordadas nos Estados Unidos. Seria inimaginável aqui um tiroteio em massa como o ocorrido em Charleston, na Carolina do Sul, EUA, alegadamente deflagrado por um homem da supremacia branca. Ao mesmo tempo, seria inimaginável também, aqui, um discurso da presidente convidando o país a enfrentar sua desigualdade racial.
O que aconteceu com Rachel Dolezal – uma mulher branca de olhos azuis, que escolheu passar por negra e foi levada ao pelourinho – é igualmente estranho para o Brasil, onde a identidade racial é sempre diluída e foi deliberadamente subordinada à questão da cor. Muitos brasileiros, de todas as raças, comparam favoravelmente seu país com os EUA, onde a discussão sobre racismo é ostensiva e muitas vezes raivosa.
Ainda assim, a discriminação no Brasil é uma força tão poderosa quanto nos EUA e cobra um alto preço por aqui também. Esse custo assume formas óbvias: por exemplo, o vasto e desproporcional número de jovens negros nas prisões. E outras mais sutis, como as conversas entre Daniele e Jonatas sobre a filha, sobre se ela é branca o ‘suficiente’.
Mas há uma mudança em movimento por aqui também. É lenta, pode ser transitória e é, certamente, frágil.  Mas por isso mesmo está acontecendo, através tanto de reformas institucionais como de escolhas pessoais. Nesse processo, todos estão sendo chamados a questionar os mecanismos e estruturas seculares de construção de identidade, oferecendo às pessoas como Daniele novos caminhos para idealizarem suas vidas.
Ana Maria de la Merced Guimarães sabia, claro, que existiu escravidão no Brasil. Não lhe ensinaram muito sobre o tema na escola há 40 anos. Os rostos negros de seus vizinhos, no entanto, eram uma evidência de que o Brasil tinha raízes na África. Ainda assim, era um assunto sobre o qual as pessoas nunca falavam ou tinham em algum momento comentado.

Ana Maria, que é branca, certamente não pensava sobre isso em 1996, quando decidiu reformar sua casa. Geminada, com telhado de telhas, foi construída há 150 anos em uma rua do Rio embebida pela história da cidade: o samba foi inventado ali e as primeiras celebrações de Carnaval aconteceram bem perto. Ana Maria, proprietária de um pequeno negócio de dedetização, queria transformar a casa em um sobrado para abrigar a família que crescia.
Depois de um dia de escavações para reforçar o alicerce, encontraram ossos aparentemente humanos. “A princípio, pensei que fosse alguma vítima de homicídio”, diz Ana Maria, hoje com 58 anos, do interior frio de sua casa. Seu tom de voz torna-se mais tímido ao lembrar sua inquietação. “E então encontraram mais ossos. E pensei: ‘é um assassino em série!’. Mas eram ossos e mais ossos e pensei: não, não existe crime perfeito a ponto da pessoa matar tanta gente e não ser descoberta”.
A prefeitura foi acionada e designou um especialista para investigar. Ana Maria foi informada que sua casa ficava sobre o antigo Cemitério dos Pretos Novos. Exatamente ali era o local onde jogavam os corpos dos africanos sobreviventes da bruta jornada de travessia do Atlântico, mas morriam antes de serem vendidos no mercado de escravos, que ficava no final daquela rua.
“Chamam de cemitério, mas era uma vala onde os negros eram despejados – apodreciam ali e então eram queimados, remexidos e empurrados para fora do caminho para novos cadáveres serem alojados”, conta ela. “Ninguém era enterrado intacto. Quanto mais aprendia sobre a história, mais revoltada ficava – muitos eram crianças, havia bebês e muitos, muitos, mais de 50 mil, penso”.
Afinal, Ana Maria ficou sabendo que o cemitério foi usado para “enterrar” perto de duas mil pessoas por ano de 1760 até aproximadamente 1830, quando o movimento abolicionista britânico reduziu a entrada de navios negreiros no porto do Rio. Uma geração após, por volta de 1876, a vala comum foi coberta por paralelepípedos e construídas as primeiras fileiras de casas, incluindo a de Ana Maria. “Eles estavam tentando apagar a memória.”
E fizeram um belo trabalho.
Há um projeto de R$ 12 bilhões (US$ 4 bilhões) para restaurar o bairro de Ana Maria, ao longo do Pier Mauá. Lá se vêem prédios comerciais, condomínios e um gigante Museu do Amanhã. Não há, no entanto, um museu do passado – nada mostrando que esse porto um dia serviu como capital global para o tráfico humano.
O Brasil importou mais escravos que qualquer outro país – 20% de todas as pessoas raptadas da África para serem vendidas eram trazidas para cá, uma estimativa de cinco milhões de pessoas, das quais 400 mil foram para os EUA e Canadá. A viagem para o Brasil saía mais barata por conta da proximidade entre África e Brasil e da rota dos ventos, o que significa que os cativos eram mais baratos também. Os donos dos escravos não queriam saber de gastar com alimentação ou cuidar dos raptados – era mais fácil colocá-los para trabalhar até a morte e, então, substituí-los.
Com isso, os escravos tinham uma esperança de vida muito menor no Brasil do que aqueles mandados para os EUA. Eles foram, no entanto, essenciais para o desenvolvimento da economia – nas plantações de açúcar, nas fazendas de café, nas minas de ouro. Mais de 2 milhões de escravos vieram para o Rio. Eram alimentados nas casas de engorda, perto da rua onde mora Ana Maria, antes de serem colocados nus em fila, inspecionados e vendidos nas praças. O Brasil foi o último país a oficialmente abolir a escravidão.
Em 1888, quando a abolição finalmente chegou, havia mais pessoas negras que brancas no Brasil, além de uma grande população de raça mista, como poderia ser descrita.  Esse resultado reflete o estilo de colonização portuguesa, que por 300 anos exportou colonos, em sua maioria homens. No início, tinham relações sexuais com mulheres indígenas, tanto consensuais como forçadas.
Quando a população indígena começou a fugir para o interior em vez de trabalhar nas plantações, ou a morrer por doenças contagiosas, os colonos se voltaram para os escravos e escravas importadas, que eram rotineiramente estupradas pelos seus donos.
Quando a escravidão acabou, membros da elite branca se viram em menor número e ficaram ansiosos. Estavam também atormentados, explica Ivanir dos Santos, ativista negro e educador no Rio. Como poderiam construir uma nação produtiva e próspera se o estoque de cidadãos era descendente de africanos selvagens?, se perguntavam. A solução óbvia, concluíram, era importar melhores genes.
O governo ativamente desencorajou os donos originais dos ex-escravos a dar-lhes trabalho remunerado e lançou um esforço para cortejarem europeus de baixa renda para virem ao país como a nova força de trabalho e com a intenção evidente de embranquecer a população.
“O princípio da primeira república era eugênica, de ‘higiene racial’”, avalia Ivanir. Isso acabou sendo consagrado em uma lei de imigração, que declarava: “A admissão de imigrantes deve obedecer à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes de sua ascendência europeia.”
Ao mesmo tempo em que os ex-donos de escravos estavam determinados a diluir a negritude do país, se puseram a trabalhar em sua própria história.  No mito da criação brasileira, chamam o país de “democracia racial”  – a versão daqui para o chamado “mosaico cultural” no Canadá, ou “melting pot”, como nos EUA (uma metáfora usada para vários fins na língua inglesa e cuja tradução literal é “vaso para misturas”).
Essa história oficial foi construída sob a seguinte ideia: a partir da abolição da escravatura, brasileiros de todas as cores passaram a ser iguais. Afinal, não havia segregação, apartheid ou Jim Crow – uma série de leis de segregação racial, atuante de 1877 até meados de 1966 nos EUA.  A elite brasileira, predominantemente branca, declarou o país singularmente igual e, de fato, pós-racial, encobrindo, assim, as massivas disparidades entre os ex-donos e os escravos recém-libertados, que não tinham educação, terra ou bens.
“Foi uma forma de ‘invisibilização’”, diz Marcelo Paixão, negro, professor de economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. “O discurso dizia não haver raça no Brasil, portanto não temos problemas de raça e não precisamos discutir sobre desigualdade”.
O primeiro censo pós abolição, em 1890, não perguntava sobre a raça das pessoas, mas sobre cor: se eram brancos, marrons, negros, amarelos ou caboclos, uma palavra portuguesa se referindo àqueles com alguma ancestralidade indígena, mais conhecidos como da cor vermelha.  Ao longo dos anos seguintes, a identidade racial foi progressivamente substituída por considerações sobre cor. Em 1976, buscando aprimorar a precisão do censo, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) pesquisou milhares de brasileiros sobre a palavra que eles próprios usavam para definir suas cores, e chegaram ao número de 136. Mencionaram termos como amarelo-queimado, canela e morena-bem-chegada.
De certa forma, foi uma ideologia progressista, nota o professor Marcelo.
Permitiu a nuance em vez de indicadores branqueadores da “pureza racial”. E também resultou em uma cultura genuinamente mista, apesar dessa mistura ser, em parte, resultado da apropriação. Pilares da cultura negra – como o samba e a capoeira, praticada em segredo pelos escravos – foram totalmente absorvidos pela identidade brasileira.
Mas dentro dessa cultura e sociedade, havia uma inevitável hierarquia do que seriam consideradas características raciais. A ideia dominante, propagada pelos brancos, e que acabou também sendo aceita por muitos negros e pessoas de raças mistas, aponta o professor, foi que a parte “branca” da mistura trouxe uma racionalidade europeia, enquanto os negros trouxeram alegria e criatividade, uma perspectiva positiva. Paixão enumera adjetivos e revira os olhos. Quanto mais branco alguém era, mais características “valiosas” a pessoa possuía. Ser mais-para-o-branco aumentava as chances de conseguir emprego e ser melhor remunerado. Ser mais-para-o-branco, em outras palavras, era desfrutar de uma vida mais fácil. O Brasil se tornou o que algumas vezes é chamado de “pigmentocracia”. O professor Marcelo Paixão está entre os poucos cinco por cento de negros do corpo docente da Universidade Federal.
Ao mesmo tempo, a divisão de poder e riqueza que se fechou em si mesma no tempo da abolição da escravatura nunca foi abordada. Escravos libertos no Brasil eram livres, também, de coisas fundamentais para se criar igualdade: bens, educação e acesso ao capital. Não houve reforma agrária para quebrar as plantações gigantes e dar aos ex-escravos um meio de auto-sustento. No Rio, era negado a ex-escravos o direito de viver na cidade propriamente dita, e acabaram vivendo em rústicas moradias nos morros ao redor da cidade – essa é a sombria origem das favelas, que hoje é parte integrante do cartão postal da cidade.
O legado da escravidão, e o fracasso em abordá-lo, é visível em inúmeras outras formas. O Brasil conquistou enorme progresso social nos últimos treze anos: mais de 30 milhões de pessoas, quase um sexto da população, saiu da linha da pobreza e ingressou na baixa classe média. O impulso veio tanto do aquecimento da economia – movida pela vasta quantidade de petróleo encontrado em campos marítimos, e os altos preços de mercadorias, alimentados pela demanda chinesa – quanto das políticas sociais progressivas, que aumentaram dramaticamente o salário mínimo e realizaram transferências de capital para trazer segurança econômica aos pobres.
Mas esse progresso não atingiu a todos os brasileiros igualmente. Mesmo depois desses treze anos de rápidas mudanças, brasileiros negros e de raça mista continuam a ganhar 42.2 por cento menos que os brancos. Apenas 30%deles terminam o colegial. Os brasileiros negros também morrem mais cedo, e jovens negros do sexo masculino morrem a dramáticas altas taxas, em comparação com os brancos, tipicamente vítimas da violência, normalmente pelas mãos da polícia.
Os vários caminhos do progresso econômico e social serviram apenas para trazer à tona o quão entrincheirada está a hierarquia de raça e cor, que permanece. No último censo de 2010, 51 por cento dos brasileiros identificavam a si mesmos como negros e de raça mista. Mas os corredores do poder mostram algo diferente. Das 381 companhias listadas na BOVESPA, simplesmente nenhuma tem um chefe executivo negro ou de raça mista. Oitenta por cento do Congresso Nacional é branco. Em 2010, um think tank de São Paulo analisou o corpo executivo das 500 maiores empresas brasileiras e descobriu que meros 0.2% eram negros, e somente 5,1 por cento eram de raças mistas.
Até os casamentos inter-raciais são um capítulo à parte. Eles são menos comuns entre as pessoas nas altas faixas de renda, predominantemente brancas, e mais comuns entre os que ganham menos, que são quase totalmente negros e de raça mista. Carlos Antonio Costa Ribeiro, um sociólogo branco da Universidade Federal do Rio de Janeiro que estuda raça e economia, descreve esse quadro como uma barganha: quando casamentos assim acontecem, a pessoa de pele mais escura normalmente tem uma nível educacional mais elevado ou uma renda mais alta ou ambos.  A relação é uma transação econômica – cada pessoa está ganhando mobilidade social, de uma forma ou de outra.
Há também uma espécie de alquimia, explica o professor Ribeiro, das pessoas com herança de raça mista, que foram bem sucedidas nos negócios e na política, e acabaram sendo vistas como brancas, caso do magnata Roberto Marinho. Mesmo nos dois campos nos quais os negros brasileiros são bem sucedidos – esportes e música – essa alquimia consegue promover sua magia negra. O jogador de futebol e fenômeno Neymar da Silva Santos Júnior, que se apresentou como negro quando começou a chamar a atenção no campo, se tornou, na percepção popular, se não branco, certamente não negro.
Foi contra esse longo e complexo pano de fundo que Daniele e Jonatas se encontraram quinze anos atrás, quando ainda adolescentes em uma parte áspera do Rio. Eles saíam com um grupo de garotos e garotas multirraciais e nunca pensaram sobre raça, até a noite em que se beijaram em uma esquina. Jonatas, tímido e atarracado, relembra em uma recente conversa de domingo à tarde, que no minuto em que pousou os olhos naquela menina esguia, sentiu que estava destinada a ela. E não hesitou, mesmo brevemente, em trazê-la para a casa de sua família. (Por que deveria? Seu próprio pai é de pele negra, assim como ela). E comenta que correu tudo bem.
Mas não é exatamente assim que sua mulher relembra o momento. Voltando-se para ele com uma expressão de exagerada surpresa, Daniele diz: “Eles me chamaram de neguinha e todo o tipo de coisa. Eu ouço pessoas te perguntarem: ‘você está com aquela negra?’”
Na casa da família de Daniele, por outro lado, o novo namorado foi recebido de forma diferente. “Eles o parabenizaram”, disse com naturalidade. “Porque eu estava clareando a família, certo? Senti como se estivesse fazendo algo importante.”
Há um custo, para o Brasil, nessa determinação de continuar permitindo que a raça dite as oportunidades: no massivo número de homens negros que se viram na prisão em vez de escolas ou no trabalho e mulheres negras relegadas ao trabalho de domésticas por sucessivas gerações, pois são vistas como se esse fosse o único trabalho capaz de realizarem. Em 2008, José Vicente, Diretor da Universidade da Cidadania Zumbi dos Palmares em São Paulo, calculou que o PIB do Brasil seria 2 por cento maior se os negros fossem ativos participantes na economia. Isso custa a todos, diz o professor Paixão, e, no entanto, os capitães da indústria, que mantêm uma força de trabalho praticamente toda branca, são muito “míopes” para enxergar.
E há, ainda, outro tipo de custo, aquele que vem em momentos de intimidade, como esse entre mãe e filha. Sarah Ashley às vezes senta no colo de Daniele e a abraça. “Queria ser como você”, diz a menina de cinco anos. “Queria que minha pele fosse como a sua – sua pela é linda”. Ao que a mãe gentilmente corrige: “Digo a ela: minha pele é feia, minha cor é feia”.
Daniele claramente luta com as contradições de suas próprias ideias sobre raça. Ela se movimenta com a segurança de uma mulher que sabe que é bela. E como uma cristã evangélica, não quer sugerir que Deus cometeu um erro quando a criou. Mas aquelas verdades sentidas como inatas são às vezes duras de conciliar com o que tem ouvido por toda a vida. Quando estava crescendo, sua mãe, que é branca, dizia coisas como: “te encontrei no lixo”.
“Ela não queria dizer o que disse, exatamente”, consente Daniele. Mesmo assim, sua mãe nunca fez esse tipo de comentário para sua irmã. “Sempre imaginei se era porque ela era mais velha ou porque era mais clara”, lembra. “Acredito ser a pior da pior, a mais feia. Achava que todo mundo ficava olhando para mim”.
Daniele e sua família moram em Nova Iguaçu, uma cidade dormitório que está a apenas 40 quilômetros das palmeiras e areias brancas de Copacabana. Mas poderia ser outro universo. As ruas são terríveis, a polícia aparece apenas para coletar propina e as pessoas vivem em casas rústicas de tijolo, atrás de altos muros. Mas há espaço por aqui e uma chance de construir uma casa como a que ela e seu marido têm – familiares mudam para cá em busca de se elevarem à nova classe média. A avó de Daniele, Nadir de Mattos Correa, mora há apenas duas quadras com suas filhas, Simone e Michelle, tias de Daniele, e suas famílias. Elas vão umas às casas das outras o tempo todo.
Daniele é mais ligada à sua tia Simone Vieira de Lucena, cuja pele é negra como a sua, e que cresceu, como Daniele, como a mais negra de seus multicoloridos irmãos. Daniele normalmente usa o apelido da família para ela: Neguinha.
“Sou a mais negra – foi sempre assim que me chamaram”, diz Simone, 42 anos. Contou que quando era menor suas irmãs disseram à ela que alguém com aquele nariz e cabelo não poderia esperar encontrar um marido. A ideia ficou tão cravada nela não permitia que tirassem foto dela até os 20 anos. Como Daniele, Simone credita à igreja por, de certa forma, ter melhorado a percepção que tem de si mesma e de seu valor. E contou como, em determinado momento, cansou de esperar, inutilmente, que um dia se tornasse mais clara. Ela e sua sobrinha referem-se uma à outra como preta, negra e, algumas vezes, em vez do nome, chamam uma a outra de macaca ou fumaça. E Simone chama Daniele de sua melhor amiga. Elas fazem isso, afirmam, em total estado de afeto. “É diferente”, diz Simone, “quando é entre a gente”.
Quando preencheram o formulário do censo, Simone marcou ‘negra’ no quadrado. Seu marido, Joacinei Araújo de Lucena, 48, que tem pais das cores negra e branca, assim como ela, se define como “pardo” ou “marrom”. E insiste que ele, Joacinei e suas duas crianças, são mistos – nem um, nem outro. E que misto é uma raça por si só. Simone não compra essa. “Não passou por branco é preto,” diz ela normalmente para seus adolescentes. “Se você não é branco, é negro.”


Daniele, Jônatas, e Sara Ashley.

Nenhum comentário:

Postar um comentário