Semana que vem, uma comissão do Senado Federal aprovará um projeto de lei para reduzir nossa dose cotidiana de brutalidade: em casos de prisão em flagrante, a polícia ficará obrigada a apresentar o detento perante um juiz em até 24 horas.
O magistrado então decidirá se o sujeito responde ao processo criminal em liberdade ou atrás das grades.
Trata-se de um direito já codificado em normas internacionais. Na América Latina, os únicos que não contam com o mecanismo são Cuba e Brasil.
Nosso atraso é terrível. A vasta maioria das pessoas presas em flagrante passa meses de prisão antes de ter a primeira audiência. O processo superlota o sistema prisional, fortalece as gangues que lá proliferam e faz do Brasil um campeão mundial de detenções arbitrárias em casos de ofensas não-violentas.
Tem mais. Pesquisas recentes revelam que o sistema atual contribui para o uso disseminado da tortura por parte de agentes do Estado brasileiro. Isso ocorre porque é nas horas imediatamente seguintes à detenção que se concentram os espancamentos, os estupros, os eletrochoques e a asfixia por saco plástico que compõem o repertório do terror. A evidência mostra que a apresentação imediata do detento perante um juiz tem poder dissuasório contra a prática da tortura.
A mudança na lei é impulsionada por uma aliança recente entre Comissão Nacional de Justiça, 12 governadores hoje acuados pela crise do sistema prisional e seus senadores.
Juntos, eles montaram um programa piloto com resultados impressionantes.
Quando um juiz decide sobre a custódia de prisioneiros com base em documentos escritos, apenas 10% dos detentos respondem ao processo em liberdade. Quando há uma audiência presencial, o número salta para 60%.
Se virar lei, o projeto que ora tramita no Senado transformará o sistema prisional. Para vingar, porém, o projeto terá de superar as forças do atraso à esquerda e à direita.
Basta lembrar da declaração de Dilma Rousseff em Harvard, há três anos: "Eu não tenho como impedir em todas as delegacias do Brasil de haver tortura", disse a presidente, ao arrepio da evidência empírica. E arrematou: "Sei do que acontece em Guantánamo", como se um crime justificasse o outro.
O projeto ainda terá de atravessar a Câmara dos Deputados, onde corporações policiais influentes são avessas à proposta. Elas já circulam um texto alternativo segundo o qual as audiências com detentos não seriam conduzidas por juízes, mas por delegados de polícia.
Com sorte, aqueles que resistem à ideia de que o Estado brasileiro serve ao cidadão não passarão.
Texto de Matias Spektor, publicado na Folha de São Paulo.
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